Shangri-La
“Lá o tempo espera
Lá é primavera
Portas e janelas ficam sempre abertas
Pra sorte entrar”
Este é um texto sob encomenda, não é o
primeiro que eu já fiz.
Havia uma rotina na academia, alguns caras
do terceiro ano olhavam as notas nas redações do concurso, e como eu havia
mandado bem, me transformei em redator oficial para as namoradas dos amigos.
Naquela época havia inventado um sistema.
Escrevia para a minha garota e deixava que adaptassem os detalhes tão
pequenos de nós dois.
Se assim o fizesse agora para você, diria
que a sua vó tinha uma doçura incomum. Que fazia o seu prato predileto como
nenhuma outra pessoa seria capaz. Que lhe esperava até altas horas da noite.
Que coçava as suas costas como ninguém jamais o fez. Que zangava contigo de vez
em quando. Que a memória dela já não era isso tudo. Só que mesmo assim você
nunca viu ninguém tocar a vida com tanta sabedoria.
O resto deixaria por conta de sua
imaginação. A moldura estaria pronta, mas a aquarela seria sua. Então você
ficaria feliz pelo texto que encomendou, pois é assim que acontece com textos
encomendados. Mesmo assim, para lhe impressionar bastava por uma imagem
bonitinha, com algum Control C /Control V, e todos estariam felizes.
E estava feito.
Assim são as avós.
Mas ela era mais.
Ela era a Jaísa.
Isto me obrigaria a lembrar a história que
ela se divertia em contar de quando me confundiu com doente mental no dia em
que fui me apresentar para a família dela.
Teria que lembrar do bolo feito com frutas
e do melhor feijão do mundo.
Teria de usar um vocabulário tão
particular, que parecia uma linguagem só dela.
Teria que lembrar que ela ligou para o
cursinho implorando para você voltar para casa quando lhe colocamos no
alojamento.
Teríamos que gritar como loucos naquele
jogo do Vasco contra o Avaí.
Teria que ter duas cachorrinhas a seguindo
por todos os cantos da casa.
Teria que ter bolo de fubá (ou bolinho de
chuva) para quem quer que chegasse.
Teria que cantar uma música da Dalva de
Oliveira, e se fosse o Hino ao amor, nos fazer chorar até não haver
mais lágrimas no mundo.
Teria que lembrar que quando quebrou o
fêmur ela pediu ao médico que antes cuidasse de seu joelho ralado.
Teria que lhe dizer que você foi o último
grande amor dela.
Mas, esquece tudo isto.
Só quero lhe contar uma história.
Em
seu ano derradeiro ela veio morar no Carmo com a gente. E como o alemão que
deixa todo mundo doido já tinha se enamorado da Jajá, ela achava que estava em
Jacarepaguá.
Depois de tentar explicar várias vezes e
tintim por tintim que não era bem assim, desisti. Aqui no nosso endereço era a
casa dela e pronto!
E tanto gostou da cidade, e do bairro, e
dos vizinhos, e da casa, e do quintal, e da rua, e de estar por aqui; que pediu
a sua mãe para botar uma placa dizendo simplesmente: Shangri-La.
Tive que me acostumar com o fato de que
ela me oferecia um cafezinho quando eu chegava do trabalho, e perguntava se eu
precisava de uma toalha ou se eu ia passar a noite. E era assim que ela me
fazia me sentir em casa.
Bem é isso.
Esta história ainda não acabou, por que você sequer pegou no pincel para os retoques. Talvez queira fechar
este texto com o cliché de que uma mulher sábia transforma qualquer casa em um
lar, ou até levar o que digo assim, meio que sem fim. Afinal como o Cézar lhe
disse: viva a Jaísa que vive em você.