domingo, 10 de maio de 2020


Acabei de escrever uma homenagem às mães de minha vida. E o que deveria ser leve e bem humorado, findou sendo um texto denso com duas referências a mitologia grega.
Juro não ter sido minha intenção. O escrito fugiu de minhas mãos. Não se trata de usar aqueles recursos pseudointelectuais para terminar discussões. Do tipo: “isto é só um paradoxo de fluxo temporal”. As deusas gregas invadiram minhas linhas, pois elas falam muito em o que é ser mãe.
A primeira referência é de fácil explicação: Afrodite e Psiquê simplesmente reencenam a eterna rivalidade entre sogra (não tem jeito, quem é mãe corre este risco) e nora.
Já o que ocorre entre Demeter e Perséfone leva a nossa conversa para outro nível. Espero que vocês me permitam tanto contar quanto interpretar, me apossando indevidamente das duas vertentes.
Lá vou eu.
Para saber quando o sagrado feminino deixou de ser cultuado é preciso entender o porquê das deusas terem sido substituídas violentamente por seus pares masculinos. A mitologia reflete o mundo, e do lado de cá os homens tomavam o poder, que era antes direcionado a elas, especialmente nas sociedades agrícolas. O que tem toda lógica, uma vez que só uma mulher pode florescer e frutificar.
Cada uma das deusas teve que lidar com um par mais poderoso e menos compassivo.
Neste contexto Demeter era a mãe terra. Só que ela deu o azar chamar a atenção de um dos três deuses mais poderosos, Posseidon (o pai de Percy Jackson, lembra?). Ao fugir ela se transformou em águia, gazela, leoa, pomba e ia conseguindo (o macete seria buscar algo que não se encontrasse no mar), porém, quando virou égua (já ouviu falar em cavalo marinho?) foi violada pelo deus dos mares.
Entretanto, nada a lamentar. A deusa que era mãe de todos passou ter uma filha só dela: Perséfone. Contudo, esta também chamou atenção de um deus, o do submundo. Hades a raptou. A refém, distraída, se sentou à sua mesa e de modo incauto aceitou uma romã.
Feito. O feitiço inquebrantável a prenderia eternamente.
A mãe procurou em cada canto. Quando finalmente soube da sina da menina, pediu a arbitragem de Zeus, que nada pode fazer diante de regras fixas.
- Sou a mãe terra. Devolvam minha filha. Ou nada vai florescer ou procriar.
Quando todos estavam famintos, os três grandes deuses chegaram a um acordo.
Perséfone ficaria parte do tempo sob e outro sobre a terra.
Ela é o grão de trigo.
A história acaba aqui.
Mas há algo ainda a dizer: os três maiores poderes nada podem contra a determinação de uma mãe.  


Mães, irmães e outras mães

Começo esta história do mesmo modo que já comecei outra: minha família teve tramas tão entrelaçadas que eu deveria convidar a Isabel Allende para contar os ocorridos. O ponto de partida do que digo se desenvolve quando decido falar de uma vez “o que vivi e tudo o que aconteceu comigo” para minha namorada.
Não queria que as dores e estranhezas pudessem ser, depois, motivo para o que quer que fosse. E foi assim, um verdadeiro choque anafilático. Eu sabia, entretanto, que minhas palavras nos libertariam. Pois é para isto que serve a verdade.
Um detalhe doce, todavia, posso dizer aqui: “querida, você vai ter três sogras!”. O que seria o suficiente para afastar qualquer garota com o mínimo de bom senso. Poderia até pedir emprestado da mitologia grega o relacionamento entre Afrodite e Psiquê, caso este texto tivesse qualquer pretensão mais séria.
O fato é que fui colecionando mães ao longo de minha vida. Hoje entendo que ser o mais novo de uma família tão numerosa elevou pelo menos duas de minhas irmãs sobreviventes à condição de “irmães”.
O rompimento entre filhos e mães sempre tem algo de belo e algo de drama, mas não passarei de uma anedota remetida a outro momento: aquele em que minha sobrinha pergunta a uma irmãe se eu seria o seu filho legítimo. O que não seria possível diante da pequena diferença de idades e só seria explicado devidamente em uma novela mexicana.
A outra irmãe foi morar nos States, em sua luta incansável pela dignidade.
Minha condição de vira-latas se reforça hoje por eu ter uma mãe no céu (ou duas se quiser contar Santa Maria), uma americana e outra mexicana. Também fui adotado pela Glória em sua poderosa ascendência indígena e pela dona Eny, minha mãe pretinha (como ela mesma se intitulava).
Mães são uma força da natureza. Voltando ao Olimpo, pergunte a dois deuses superpoderosos o que é se curvar ante a vontade de Demeter a procurar sua querida semente de trigo.
Uma vida é pouco para honrar estas mulheres fantásticas que povoam este texto e minha vida. Mesmo assim, farei o que estiver ao meu alcance para agradecer por todo amor que elas emanam.