quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Alexa, conte uma história

 

A TV era disputada a tapa lá em casa, coisas de família com onze filhos, então me acostumei a ter meus desenhos preferidos... preteridos. Só que tudo mudou quando conheci o Mr. Spock, aprendi a dizer que nunca havia visto aquele episódio de um modo tão convincente que até eu acreditava, então tinha que recitar baixinho: “Espaço a fronteira final, essas são as viagens da nave interestelar...” A ficção já fazia parte de mim com os livros do Asimov que vinham quase enfileirados da biblioteca pública para as minhas mãos.

Dentre as coisas que me fascinavam estava a porta que abria automaticamente, a viagem em dobra espacial e o computador que respondia ao comando de voz. Não chego a ser do tipo capaz de usar fantasias em convenções, mas assumo que faço o sinal vulcano para desejar prosperidade ou mesmo para saudar a porta do shopping que abre automaticamente.

Se você tem mais de 50, sabe bem do que estou falando, e nem precisa ter visto Star Trek, que ainda é de certa forma de um nicho, porém posso quase afirmar que não teve como escapar dos Jetsons.

Mesmo assim me considero muito analógico, comparado as gerações definidas por letras de qualquer alfabeto, além do mais o inevitável conhecimento da física (consequência inescapável de ser um nerd que se preze), deixa muito claras as limitações da velocidade dos corpos estabelecida pela relatividade geral.

Tais limitações levam ao campo da fantasia imaginar o uso de uma frase do tipo: “Computador calcule o tempo de deslocamento ao planeta Oxx em dobra 9”. Talvez por isso minha longa resistência em adquirir uma Alexa só para pedir músicas ou saber as horas. Mesmo assim ela finalmente chegou lá em casa.

Até achei legal a conectar aos filmes que passamos ver, e ouvir a rádio JB ou ainda um bocado de Beatles. Só que hoje finalmente fomos surpreendidos por uma pequena magia. A Aninha (aquela garota que adotou o nerd sem jeito há quase quatro décadas - me tirando da solidão do típica de quem usava a mão direita para fazer carinho na esquerda para fantasiar que estava namorando). Bradou retumbantemente: “Alexa, conte uma história”, ao que foi respondida: “Você deve pedir permissão de seus pais para isso”. Depois de massagear a bochecha de tanto rir, finalmente eu falei que iria resolver no aplicativo, não seria a primeira vez que pensaram que ela era minha filha.

Bug resolvido e logo veio a história de um cachorrinho esquisito de pernas longas, focinho achatado e rabo de pompom. Falante ele diz para a menina que o achou que é assim por ser filho de galgo, neto de boxer e bisneto de poodle, mas se o adotar será todo feito de amor.

Então o equipamento ultra tecnológico já se pagou, simplesmente por um ato mais que humano de transformar em metáfora a minha própria história vira-latas adotado por uma linda menina.  


quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Ilustríssima

 Devo ter visto o Mágico de Oz umas duzentas vezes quando passava todo os dias na Sessão da Tarde, porém só recentemente dois detalhes ficaram claros para mim: a relação com diversos problemas ligados a Defesa Civil e o fato de que o filme, inicialmente em preto e branco explode na novidade do Technicolor revelando a cor da “brick road”. Logo eu que ainda há pouco pensava que a memória teria em nós algo como fitas cassete enroladas em nossos neurônios.

Hoje compreendo o quanto a memória me traz para o mundo feminino ao lembrar da irmã que não sobreviveu a si mesma me oferecendo banana com canela, da outra irmã que me deixava desolado ao pôr o uniforme da famosa loja de departamentos para sumir de minha vida ou da menorzinha que se escondia atrás das pilastras dos blocos dos sargentos para cuidar de mim.

Hoje essa deusa louca chamada Mnemosine me diz que para lembrar algo deve ser, necessariamente, relevante em emoção. Dentre essas névoas passa um filme em cores plúmbeas de um ônibus avariado no que parecia ter sido mea culpa por estar fazendo muita bagunça. Todos no coletivo, incluindo o condutor mal-encarado apontavam os olhares para mim. Se o que recordo até agora lhe parece inverossímil dê o devido desconto pois até então minha mente só havia vivido uns quatro anos. Então um pequeno anjo de cachinhos dourados e olhos azuis me dá a mão e diz: “falta pouco, daqui até em casa dá pra ir a pé”. Um final triste para um passeio na praia.

Ela deveria estar pisando nos astros distraída ao passear entre duas músicas daquela época: “she was just sixteen and all alone, when I came to be” e “she was just seventeen and you know what I mean”, entretanto já carregava as dores de “Maria, Maria”, antes mesmo do Bituca cantar.

Eram anos de chumbo, mas ela e seu namorado precisavam de uma pausa humanitária em uma luta que já se provava ser assimétrica. Como ele era meu irmão decidiram se esconder na praia, e para parecer um feliz casal com um filhinho me pegaram emprestado para reforçar o disfarce. Foi uma semana de sol, sal e pão de milho, em um filme colorido no prenúncio do furacão que iria levar tudo para o reino de Oz.

Os nove anos seguintes não foram nada fáceis para o casal que disse adeus a estrada de piso amarelo, tantas vezes manchada pelo sangue de seus companheiros. Fatos que não cabem nos programas de entretenimento da TV.

O tempo lhes deu a chance de mostrar suas cores verdadeiras. E até poderíamos parar por aqui pois somos efêmeros como beijos de novela.

Hoje o anjo tem pintado de branco os cachinhos dourados e parece ter esquecido dela mesma. Então cabe a nós lembrarmos, sobre o risco de que o esquecimento nos leve aos mesmos erros que apontam para a Casa Rosada, a despeito dos alertas das Mães de Maio.

Então lhe proponho que não olvide! Me conte das histórias em que ela ficou gigante a despeito de sua frágil estatura defendendo alguém que precisava. Me diga que se é verdade ou anedota as tantas cartas que chegavam ao escritório dela, devido ao seu nome lembrar o diminutivo de ilustríssima. Fale de como ela se comporta como mãe, trabalhadora ou revolucionária. E fale com afeto, afeto é irmão siamês da memória.