segunda-feira, 3 de maio de 2021

Perguntas

 Rex não era íntegro. Não confunda esta palavra com honestidade. Honesto ele era. E não era pouco. Integro é outra coisa: é quando conseguimos juntar todas as nossas partes espalhadas pelo chão. Rex era no mínimo bipolar.

Quando bebia das águas era divertido. Ele sempre pedia para eu contar a mesma anedota de sempre, um jogo de palavras infantil que ele mesmo havia me ensinado. Contudo era incapaz de repetir de tanto que enrolava a língua que trazia o cheiro acre das águas do esquecimento.

O que ele jamais esquecia era de me trazer um pouquinho dos pedaços mais apetitosos provenientes das caçadas. Mesmo assim eu tinha medo, nesse estado ele parecia muito com a figura do humano da carrocinha, o temor mais profundo que qualquer filhote pode carregar no coração.

Quando se abstinha era sábio e um tanto circunspeto. Nesses momentos se transformava em um filósofo formidável e o lobo mais inteligente que eu já havia conhecido. Afinal, em suas andanças ele havia conhecido muitas terras e não há nada no mundo que ensine mais do que conhecer novos espaços, diferentes lobos, cães e homens. No frio da noite ou no calor escaldante das Areias do Tempo. Lobos têm olhos, focinhos e ouvidos, mas não são todos que usam. Rex tinha estes recursos muito aguçados.

Outra forma de aprender é mítica. Dizem que os homens têm umas caixas que se abrem e são capazes de revelar o mundo para eles.  Tais objetos mágicos seriam capazes de os fazer viajar sem sair do lugar e preservar a sabedoria dos que partiram para sempre. É lógico que eu não acredito nisso: se eles tivessem, de fato, algo assim tão poderoso jamais fariam tantas besteiras.

Foi para essa versão, mais reservada de meu pai que perguntei o que era o Sagrado Eterno, esperando por uma resposta que ultrapassasse o “Sagrado Eterno não se explica, se vive” que a Lupina tanto insistia.

Então ele olhou para mim e respondeu cautelosamente:

“Chronos”, ele me disse - já que nunca se referia a ninguém usando seus apelidos – “tanto perguntei esta mesma questão para finalmente compreender que o Sagrado Eterno é diferente para cada um que o vive”.

“Há aqueles que acreditam que o Sagrado Eterno começa depois dos portões dourados um pouco antes da Lua, mas não é possível chegar lá usando este corpo que temos”.

“Outros pensam que voltamos para a natureza em um ciclo sem fim”.

“Já ouvi dizer que o Sagrado Eterno não existe e o que devemos preservar a memória das lutas”.

“Há também quem acredite no sábio do Leste e diz que devemos nos desvencilhar da vaidade e do desejo”.

“Já conheci um velho lobo de manto negro como a noite. Ele contava as histórias de sua versão do Sagrado Eterno, cantada em uma melodia ritmada que fazia quem estivesse ao redor entrasse em transe”.

“Gosto também do que ouvi no mosteiro onde contavam que houve um sábio que veio das Terras entre os Rios, com sua mensagem de amor”.

“Qual delas é verdadeira”, perguntei como se isto pudesse ter uma resposta simples. Rex replicou simplesmente: “Não sei. Mas sei que devemos ter por sagrado tudo aquilo que for sagrado para outro lobo, cão ou humano”.

A outra pergunta veio automática: “Em que você acredita, papai?”. “Acredito que é hora de você dormir”.

Você pode até pensar que eu havia ficado sem resposta. Isso se você não sabe que os filhotes sabem muito mais de seus pais pelo que observam do que pelo que dizem. E o que eu via no Rex eram muitas horas em silêncio. E o silêncio diante dos mistérios é uma forma poderosa de oração.

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