Rex não era íntegro. Não confunda esta palavra com honestidade. Honesto ele era. E não era pouco. Integro é outra coisa: é quando conseguimos juntar todas as nossas partes espalhadas pelo chão. Rex era no mínimo bipolar.
Quando bebia das águas era divertido. Ele sempre pedia
para eu contar a mesma anedota de sempre, um jogo de palavras infantil que ele mesmo
havia me ensinado. Contudo era incapaz de repetir de tanto que enrolava a língua
que trazia o cheiro acre das águas do esquecimento.
O que ele jamais esquecia era de me trazer um pouquinho
dos pedaços mais apetitosos provenientes das caçadas. Mesmo assim eu tinha medo,
nesse estado ele parecia muito com a figura do humano da carrocinha, o temor
mais profundo que qualquer filhote pode carregar no coração.
Quando se abstinha era sábio e um tanto circunspeto.
Nesses momentos se transformava em um filósofo formidável e o lobo mais
inteligente que eu já havia conhecido. Afinal, em suas andanças ele havia
conhecido muitas terras e não há nada no mundo que ensine mais do que conhecer
novos espaços, diferentes lobos, cães e homens. No frio da noite ou no calor
escaldante das Areias do Tempo. Lobos têm olhos, focinhos e ouvidos, mas não são
todos que usam. Rex tinha estes recursos muito aguçados.
Outra forma de aprender é mítica. Dizem que os homens
têm umas caixas que se abrem e são capazes de revelar o mundo para eles. Tais objetos mágicos seriam capazes de os fazer
viajar sem sair do lugar e preservar a sabedoria dos que partiram para sempre. É
lógico que eu não acredito nisso: se eles tivessem, de fato, algo assim tão
poderoso jamais fariam tantas besteiras.
Foi para essa versão, mais reservada de meu pai que perguntei
o que era o Sagrado Eterno, esperando por uma resposta que ultrapassasse o “Sagrado
Eterno não se explica, se vive” que a Lupina tanto insistia.
Então ele olhou para mim e respondeu cautelosamente:
“Chronos”, ele me disse - já que nunca se referia a ninguém
usando seus apelidos – “tanto perguntei esta mesma questão para finalmente compreender
que o Sagrado Eterno é diferente para cada um que o vive”.
“Há aqueles que acreditam que o Sagrado Eterno começa
depois dos portões dourados um pouco antes da Lua, mas não é possível chegar lá
usando este corpo que temos”.
“Outros pensam que voltamos para a natureza em um
ciclo sem fim”.
“Já ouvi dizer que o Sagrado Eterno não existe e o que
devemos preservar a memória das lutas”.
“Há também quem acredite no sábio do Leste e diz que
devemos nos desvencilhar da vaidade e do desejo”.
“Já conheci um velho lobo de manto negro como a noite.
Ele contava as histórias de sua versão do Sagrado Eterno, cantada em uma
melodia ritmada que fazia quem estivesse ao redor entrasse em transe”.
“Gosto também do que ouvi no mosteiro onde contavam
que houve um sábio que veio das Terras entre os Rios, com sua mensagem de amor”.
“Qual delas é verdadeira”, perguntei como se isto
pudesse ter uma resposta simples. Rex replicou simplesmente: “Não sei. Mas sei
que devemos ter por sagrado tudo aquilo que for sagrado para outro lobo, cão ou
humano”.
A outra pergunta veio automática: “Em que você acredita,
papai?”. “Acredito que é hora de você dormir”.
Você pode até pensar que eu havia ficado sem resposta.
Isso se você não sabe que os filhotes sabem muito mais de seus pais pelo que
observam do que pelo que dizem. E o que eu via no Rex eram muitas horas em
silêncio. E o silêncio diante dos mistérios é uma forma poderosa de oração.
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