domingo, 16 de janeiro de 2022

FACAS NO AR

 

Estava dirigindo na santa paz como se fosse sábado, quando tomo um susto. De repente me corta pela direita, passando pelo acostamento e me dando uma bela fechada uma daquelas pick-ups que mais parecem tanques de guerra. Todo arsenal estava a postos, qual seja: faróis de milhas de uma milha de comprimento, vidros de ébano e o óbvio pino-bola que nunca viu uma carretinha em toda sua existência.

A manobra foi inútil.

O sinal fechado, encomendado pelo Paulinho da Viola, estava ali para testar o freio ABS do bólido. Pode até ser que o motorista tentasse furar tamanha a sua pressa. Porém havia um artista popular fazendo piruetas com supostos malabares, correndo o risco de morrer na contramão atrapalhando o tráfego. Só quando cheguei perto pude perceber que na verdade ele habilmente manejava facões.

Pressa. Essa é a palavra. Urgência é outra coisa. Trinta anos de bombeiro me ensinaram a diferença. É algo entre estar atrasado para uma reunião ou ter que tirar alguém das ferragens de um carro batido que começou a ser lambido por labaredas.

Procurei não dar importância a cena, e me concentrar na rádio eu onde acabara de ouvir: “Quem é rico mora na praia, mas quem trabalha nem tem onde morar, quem não chora dorme com fome, mas quem tem nome joga prata no ar” o engraçado dessa música é uma piada tão interna que tenho, que nunca me dei ao trabalho de contar para ninguém: eu pensava que o que se jogava no ar seriam facas (o que tiraria todo sentido da letra).

O breve espetáculo tinha os segundos contados, o sinal logo iria abrir. O rapaz para ao lado do tanque e logo é espantado por uma buzina tão alta que até São Pedro se assustou lá nos portões dourados do céu.

É lógico que o bacana não iria dar mole para alguém com facões na mão.

Também não sou muito fã de ser abordado na rua, porém me senti compelido a agir diferente do cara que puxava a carroça ali da frente. Abri o vidro e depositei algumas moedas no boné estendido. A única agressão que sofri foi um sorriso cheio de janelinhas.

Sei que está na moda dizer que não devemos fazer juízo de valores, não sou tão nobre assim, vejo valor em tudo e não pude deixar de observar dentre os dois personagens desta estória quem é o vilão.

Sinal verde. O pneu cantando na frente não abafa a nova música da rádio na voz rouca de Belchior que fala sobre apenas um rapaz latino-americano. Essa sim tem faca na letra.

sábado, 1 de janeiro de 2022

NÃO OLHE PARA CIMA, CASSANDRA!

Começo citando Lucia Helena Galvão, e se você ainda não sabe quem é ela não deixe de pesquisar, ao dizer algo como: “o que é clássico ainda é moderno, pois o ser humano pouco mudou”.

Então se você conhece bem o filme (não tem spoiler alert – porém, não leia antes de não olhar para cima, sob o custo de não entender nada), porém não tem a mínima ideia de quem é Cassandra, acompanha o velho aqui.

Cassandra era uma pitonisa, ou seja: uma sacerdotisa de Apolo que vivia em Troia, e sua relevância, a priori, era a extrema beleza. Como tal atributo não poderia deixar de ser um problema ela chamou a atenção de ninguém menos que o próprio Apolo (outra indicação: leia o que Marion Zimmer Bradley escreveu sobre Troia!).

Se você não sabe que alguém da ralé chamar atenção dos poderosos só pode dar zebra; lembremos de um ditado que, salvo melhor juízo, aprendi ao ver O feitiço de Áquila: “fique sempre na frente das mulas, atrás dos canhões e longe dos cardeais”.

Pois é, Cassandra recebe uma dádiva do Deus Sol: a capacidade de ver o futuro. O problema é que ele queria algo em troca e ela não deu... Então incapaz de retirar a dádiva o mais belo dos deuses faz com que as verdades da sacerdotisa jamais sejam levadas a sério. Porém se você prefere ver filmes a estudar mitologia grega não perca as cenas iniciais de Os doze macacos, onde isso é explicado muito melhor do que eu poderia fazer.

Cassandra vai gritar para quem quiser ouvir: “as muralhas vão cair”, só que ela não vai ser levada a sério. Qualquer semelhança com a cientista de Não olhe para cima não é mera coincidência.

Aqui o texto me deixa na cara do gol, e é lógico que vou chutar para fora. Pois acredito que uma metáfora - tal qual uma piada - é totalmente estragada se explicarmos muito. E graças a Deus não sou crítico, ou juiz (togado, de futebol, nem mesmo de paz).

Então não vou desfilar aqui as ligações políticas, artísticas, cientificas, midiáticas, imagéticas e humorísticas que o filme traz.

Convido apenas a todos a olhar no sentido do centro da Terra para o espaço sideral, pois do jeito que as coisas andam se eu disser para olhar para cima, vai ter algum idiota usando minha fala para provar que a Terra é plana.