terça-feira, 9 de julho de 2024

Tradutores e traidores

Lecionar para adolescentes nunca foi bolinho e a sala de aula estava especialmente agitada naquela tarde. Era a hora de usar a velha tática de passar uma música dos Beatles, a molecada sempre ficava espantada de uma banda tão velha ser tão maneira. Todavia a escolha de 8 days a week logo mostrou ser uma péssima ideia. Foi simplesmente impossível tentar explicar a eles que o número de dias não se tratava de um erro de digitação ou de aritmética. E que era aquilo mesmo que o Paul queria dizer entre um sustenido e um bemol.

Traduzir é difícil mesmo e quando é letra ou poesia a coisa fica feia. Além do mais devo declarar que tenho aversão a versões, a exceção do Beto Guedes ao perceber que os sinos na colina combinam com o perfume de todas as rosas, ou o Chico salvar a letra mequetrefe de Yes it is com um vento que passou.

Em (quase) todos outros casos não dá para traduzir sem que as ideias, as palavras ou sentido fiquem espalhados pelo chão. A lira rima com surpresa e não se conforma em dizer o óbvio. Então vamos lá: prefiro ser o serviçal de um samurai nos temores de um deserto ao som do zum de um besouro a me deitar sob um coqueiro que dá coco.

Que os olhos sorriam toda vez que alguém diga que o que é imortal não morre no final. Que lembremos da rosa por deuses esculturada enquanto passa a mulher traída que oferece 50 reais para o marido pagar a amante. Que a saudade seja afogada no copo de um bar e não na boquinha da garrafa.

Tudo isso quicou na minha cabeça ao finalmente entender que “todo mundo tem algo a esconder, exceto eu e minha macaca” de uma letra bem desencontrada do Lennon. O fato é que eu traduzia esse trecho usando a expressão “para mim e para minha macaca”. O que obviamente não fazia sentido algum. Pensar com cuidado no contexto salvou o texto, pois isso só ficou claro quando lembrei que que a Yoko era preconceituosamente atacada, e um monte de “gente” se referia a ela como chimpanzé. Então, o autor de Imagine decidiu declarar o seu amor ressignificando as palavras dos detratores. Assim “nada a esconder” poderia se referir ao modo que eles se apresentaram na cama para a imprensa em sua lua de mel.

Outro dia Djavan explicou o colorido de seu açaí, o que considero uma pena enorme. Metáfora e piada não foram feitas para serem explicadas. Se o fossem eu gostaria muito entender o porquê do coqueiro que dá coco tem que dar 50 reais na boquinha da garrafa para o marido imortal, aquele que não morre no final.

sábado, 6 de julho de 2024

EGO

 

Sou o Baby e você tem que me amar. O bordão se alternava com o personagem sendo jogado na parede. E assim mais uma vez a metáfora nos levava a catarse de sermos todos os personagens ao mesmo tempo: o bebê egocentrado e o pai despreparado que nunca sabia lidar com as pressões da vida adulta.

É dito que cães muitas vezes, mesmo sendo adultos, simulam ser filhotes a espera de uma adoção. Porém como podemos acolher seres que não passam de máquinas de fazer xixi, cocô que vêm acopladas com uma caixa de som terrivelmente ajustada para as notas mais agudas?

E voltando a ideia de que em sonhos, contos de fadas e metáforas somos todos os personagens: como adotar o menino egoísta que vive dentro de nós, principalmente sabendo que ele responde prontamente quando alguém chama o seu próprio nome?

Até mesmo penso que minha trincheira mais bombardeada pode encontrar raiz nesse fato. Melhor explicando: venho caminhado por aí lecionando até quem não quer estudar e as vezes é difícil explicar que a Terra é geoide. Talvez isso ocorra devido ao fato de que sob um ponto de vista local é o universo que se move ao redor de nosso PLANeta (lembremos que a própria palavra não prova que nada é plano – a etimologia vem do grego com significado de errante), ou ainda que as constelações não giram ao redor de seu umbigo.

Ao responder essa indagação acabo correndo o risco de (pare)ser arrogante. Trago verdades prontas há muitos verões esquecendo que uma autoestima exagerada me trouxe até aqui. Pode ser que eu desista de lhe convencer, afinal quem tem filho grande é elefante e quem tem filho com bigode é gato. Só que a coisa fica bem complicada quando sou ambos personagens. Então a tentação de matar esse menino que mora dentro de mim fica gigante ainda mais quando não é claro se ele é a expressão do príncipe de Maquiavel ou de Exupéry.

Cada uma das vezes que me perdi em minha própria arrogância a vida me deu uma porrada digna de Mike Tyson. Portanto não me diga que sou um cara legal por vontade própria, cheguei até aqui em uma trilha de menor esforço na mesma lógica do malandro que percebe ser muito vantajoso (pare)ser honesto.

Entre o menino chatíssimo(íssimo, íssimo, íssimo) e quem sou hoje há um cara com tantas histórias de perdas que nem vale a pena lembrar. Mesmo assim decidi carregar o principezinho comigo aonde quer que eu vá. Sei que de repente ele pode se soltar das amarras de uma torre qualquer jogando as tranças para encarar o mundo. Vez ou outra, vai dar bobeira e não entender que o humor não cabe em um velório ou coisa que o valha.

Outras vezes esse Reminho acerta em cheio e acolhe uma amiga na beira de um abismo, aceita o abraço da família ou simplesmente sorri quando vê um sapato velho e lembra de uma canção.

Se você estiver cansado desse cara espaçoso e inconveniente tudo bem, caso contrário estou por aí entre números, acordes e poesias na esperança de encontrar a criança que habita em você.