quinta-feira, 27 de março de 2025

A aldeia Gaulesa no corner de um campo de grama sintética

Um dos maiores obstáculos ao escrever ultimamente é superar o fosso entre mim e as pessoas 20 anos mais novas, pois minhas referências estão ficando cada vez mais datadas. O outro é a própria mania de usar palavras como “datadas” quando quero dizer simplesmente velhas. Isso me obriga a explicar a cena mental pela qual passo com detalhes cada vez mais enfadonhos. Por exemplo, tenho que dizer quem é Chatotorix e o quanto ele ficou magoado ao ver que os bardos ingleses eram reverenciados, enquanto ele mesmo era amordaçado a cada vez que chegava perto de sua lira. Entretanto, se chegarmos ao ponto de ter que explicar quem foram os Beatles, ou que a seleção de 82 foi espetacular sem ser campeã eu simplesmente lhe convido a desistir dessa crônica.

Seja como for, vou tentar simplificar ao máximo contando que também ando agarrado a um violão ultimamente, o que apesar de ser muito importante para mim, não obriga o leitor a ouvir o que toco sob o risco de me levar a condição de violador de direitos humanos. Enfim, nem todas as horas de treino podem me levar a ser um virtuose, até porque muita água passou sob (e sobre) a ponte antes que Chronos, aquele que tudo devora, permitisse que eu sequer chegasse perto das cordas de nylon. Isso antecipa a verdadeira dimensão que quero chegar: talento, esforço, tempo, organização e cultura devem se alinhar para dizer quem somos.

Volto aqui para lembrar que antes de ser bardo achava que era esperto como o Asterix. Na década de 70 ao chegar na biblioteca pública quase sempre solicitava uma certa revista em quadrinhos, enquanto a bibliotecária tentava me empurrar José de Alencar, que por sinal ainda acho bem chatinho. Óbvio, que naqueles dias eu não tinha uma compreensão plena das metáforas colocadas, mesmo assim comecei a desenhar uma vaga noção que as revistas não versavam exatamente sobre aldeias mediterrâneas, próximo dos anos em que Cristo disse que a moeda com César não pertencia a Ele. O esforço valeu a pena. Como resultado chego aqui com a coragem de quem escreve sem usar o ChatGPT.  

Nas proximidades da meia idade passei a me identificar como o Obelix tentando me convencer que era forte, não gordo. Concomitantemente, o futebol brasileiro mostrava seus primeiros sinais de decadência. Dependendo cada vez mais de heróis isolados, tal e qual em uma remota aldeia gaulesa. Campos de várzea começaram a ser substituídos por escolinhas, como se a Via Ápia chegasse nas proximidades apesar dos esforços do druida Panoramix.

Aqui cabe ressaltar que a cultura é o último bastião de resistência de um povo e que o futebol é a coisa mais importe que existe entre todas as coisas desimportantes da vida. Além do mais se não fosse a paixão pela história de resistência a favor de negros e operários, nada mais me faria torcer pelo time que torço. Ou seja, não escrevo diante da suposta dor da goleada sofrida contra a Argentina, pois isso é só um resultado esportivo. O que me entristece de verdade é perceber que cortes de cabelo, brincos e chuteiras coloridas passaram a ser os verdadeiros astros; ressalvada a luta antirracista do Vinicius Jr.

Aqui cabe sua interferência de leitor e reclamar que a conexão entre os quadrinhos e o futebol não ultrapassaram meus neurônios antes de chegar a esse texto tão desmiolado. Só que agora vai piorar: Minha dor é perceber que vejo um filme repetido tantas vezes nas salas de aula em que passei em minha vida, onde mesma cena ocorreu com diferentes papeis. É preciso ser forte para não me sentir derrotado quando somente a resposta idêntica ao do livro é aceita. Palavras e posse de bola cada vez menos se mostram receptivas a metáforas e dribles. Mesmo assim permaneço por aqui sendo guerreiro, goleiro, carregador de menires, gandula, bardo, torcedor ou druida. Enquanto assim for os romanos ainda não venceram.

sábado, 22 de março de 2025

Arremessei o projétil no felino

O título dessa crônica leva a uma antiga discussão que tenho com meus colegas professores, pois na qualidade de nerds, o que sabemos fazer melhor na vida é sermos incompreendidos. Algo como o mecânico espertalhão dizer ao cliente incauto que o problema reside na rebimboca da parafuseta. Caso não tenha reconhecido a frase mencionada no título, esta é é o início de “Atirei o pau no gato” em uma versão traduzida do português das ruas para o português do Aurélio, sendo este muito usado para causar incômodo intelectual. O que não é pretendido neste texto, apesar de muitas vezes assumir que eu mesmo não me entendo.

Passei a noite em claro pensando que a canção popular tem muito a nos ensinar. O que passa desde a crueldade com animais ao fato que as histórias que contamos para as crianças quase nunca são infantis. Tudo piora quando me ocorre que o dono do gato pode ser um tal de Schroedinger e o felino pode estar em um estágio intermediário entre morto e vivo. Tudo isso temperado com a seguinte máxima sobre a iluminação atingida por Sidarta: “Se um mestre ensina como se iluminar e um discípulo o ouve, nenhum dos dois sabe do que está falando”. Ou seja, se estou versando sobre física quântica e você presta atenção é fundamental que nós estejamos prontos para determinar a medida de nossa ignorância sobre o assunto, sob o risco de parecermos fundamentalistas.

Então, para simplificar essa confusão vamos colocar os gatos do cientista e o preto que passa na rua em suas caixas, onde não podemos determinar seu estado de saúde ao serem transpassados por ondas eletromagnéticas ou pedradas. Tudo isso também pode ser determinado por outra brincadeira supostamente infantil. Coloquem um cara na frente de uma fila de crianças que o encaram enquanto ele repete aleatoriamente as palavras “vivo”, ou “morto” enquanto seu próprio corpo segue ou não as orientações proferidas.

Então quando minha professora de Pilates está particularmente cruel e me pergunta se estou vivo ou morto depois de meus músculos e pulmões não mais darem conta da demanda, costumo responder miando. O problema real acontece quando me perguntam se sou realmente livre e vivo. Por certo dona Chica iria se admirar de minha resposta felina e onomatopaica.

domingo, 16 de março de 2025

Inconstância

Quantas vezes você já leu o Soneto de fidelidade para saber que ele não fala sobre fidelidade e ouviu o Samba de uma nota só para entender que aí sim?