terça-feira, 1 de outubro de 2019


Estava fazendo uma tradução simultânea para alguns amigos de uma minhas músicas preferidas. Sabe? Tipo Good Times 98: “Parece para mim que você viveu a sua vida como uma vela ao vento”. Então o pensamento escapou de trem para outra música quase simultaneamente e esta diz: “as velas podem fazer milagres” e soltas assim as duas velas parecem estar trocadas.

Contexto. Não dá para saber o que diz uma palavra sem que ela se torne a pele do pensamento. Esta vela pertence aos Bee Gees em um convite a uma navegação nos ventos da imaginação. A própria palavra canvas (lona) nos remete a força que impulsiona os barcos, um milagre sem santos. Aquela conta a história de uma atriz que se derreteu como a cera das asas de Ícaro e nada tem em comum com qualquer navegação que não seja da própria alma de Elton John iluminada por uma loura platinada.

Ambiguidade. Na primeira vez que vi esta palavra, o livro didático trazia dois exemplos: “matou o leão o caçador” e “Joãozinho comeu o jantar e a Mariazinha também”. O gozador do autor poderia ter inventado anTRIguidade aproveitando para ensinar o que é neologismo. Mas, como menos é mais a mensagem chegou ao aluno que antes disso não gostava muito de Português.     

Em outro momento traduzi: “Porque o céu é azul. Isto me faz chorar.” Antes de pegar a sua caneta vermelha para me corrigir separando a primeira palavra e substituindo o primeiro ponto por um sinal de interrogação saiba que Lennon e MacCartney preferiram o because ao why e foi isto mesmo que disseram. Mesmo assim caso você queira interferir ao traduzir a frase para alguém basta mudar a entonação e os porquês mudam de sentido como um vetor multiplicado por menos um.

Isso tudo parece inútil, principalmente para alguém que assim como eu ama as exatas. Porém, o culto ao utilitarismo não pode justificar falas como: “a extinção de uma espécie não modifica em nada minha vida”. Segmentamos o conhecimento e aprendemos a valorizar o que pode ser contabilizado. Mas saber que um grande empreendimento foi feito em uma praia, cujo nome significa “pedra podre” poderia ter economizado uns trocados. Então quem é sensato não despreza os que os outros sabem.

Uma língua me abriu horizontes, então estou arriscando um pouquinho de Espanhol apesar de soar como o personagem de uma velha piada o “Pancho Ligerito”. Mesmo assim lá vou eu tropeçando em falsos cognatos que já me colocaram em maus lençóis, mesmo assim vamos em frente.

Misturar línguas para mim talvez não tenha a mesma força reveladora de estudar as matérias que me dizem um pouquinho da opus Dei, mas alegram mesmo os meus piores dias.

Continuo não sabendo para que me servem os micos leões, nem o porquê de as velas pretas não terem sido trocadas antes da chegada de Teseu em casa, o que o fez velar ao seu pai. Será que a Ariadne  estava embaraçada? Todavia, sei que todas estas pequenas loucuras me dão a certeza de que certas metáforas têm muito mais a dizer. Afinal de contas o ambíguo aqui sou eu.



2 comentários:

  1. Essa crônica está tão intelectual, com tantas metáforas que terei que ler outras vezes para fazer um comentário a altura.

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  2. Concordo com a Cléopatra. Mas não da pra esperar menos intelecto vindo de um texto seu.
    saudade de você irmão.

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