sexta-feira, 13 de março de 2020

Ciclopes



Vou começar esta conversa com algo que lembro vagamente, do tipo “ouvi o galo cantar, mas não sei onde”. Fala sobre um gigante que pediu a Apolo o dom de ver o futuro. O condutor do carro de Sol concedeu o pedido, mas iria lhe tirar um dos olhos em troca.
Trato feito.
Cada um parte com o que lhe cabia: Apolo leva um olho em suas mãos, já o Ciclope leva o conhecimento de um momento muito particular de sua existência: a própria morte.
Segundo ato (este sei bem de onde veio: é parte da Odisseia)
Em uma de suas peripécias a caminho de Ítaca Ulisses disse ao seu captor que seu nome era Ninguém. E foi assim que arquitetou sua fuga das mãos vorazes de outro Ciclope. Logo após, quando o herói perfurou o olho do ser monocular, este suplicou aos seus irmãos que o vingasse. Só que isto não aconteceu, pois eles lhe perguntaram: “quem o feriu?” A resposta foi... “Ninguém”.
Desta forma é que Odisseu recebeu seu terceiro nome e se transformou ardilosamente em ninguém para seguir o seu caminho.
Terceiro ato.
Eu estava terminando o segundo grau e cansei de ouvir esta charada:
“O que é um pré-vestibulando de bicicleta com um cruzeiro na mão?”
A resposta vinha em coro: “Nada!”
Era um alívio cômico das tensões do dia-a-dia, mas poucas respostas poderiam ser tão verdadeiras.
O tal do Vestibular é um dos últimos rituais de passagem de nossa sociedade. Morremos de pena dos jovens que têm um ano para decidir o resto de suas vidas. Logo nós, reis em terra de cegos, que só temos uma certeza de nosso futuro.
Chegada é a hora de sair de casa, ter maior autonomia, decidir o que mais estudar e andar em caminhos onde não se podem ver pegadas.
Os filhos não podem ser protegidos pelos pais ao atingir 40 ou 50 anos. Em algum momento deve haver uma ruptura, sob o risco de ter que lidar com adolescentes de 60. Infelizmente há muitos por aí.
O estudante deve entender que, para fugir de uma expectativa monstruosa na qual toda a visão de futuro só o leva ao implacável perecer, ele tem que saber o que é ser ninguém. Assim pode construir uma nova perspectiva de pleno desenvolvimento humano, tão essencial quanto ar.
Barro novo e macio que ao girar, sofrendo, é moldado.  
Não sei você, mas estou muito longe de ser a criança mimada e egoísta programada para ter o mundo aos meus pés. Amadurecer tem tudo a ver com destruir o ego.
Isto tudo está longe de ser um sistema perfeito, mas se você não gosta dele, pergunte como os aborígenes australianos fazem para que meninos se transformem em homens.
  

Um comentário:

  1. Crônica que vem no momento certo para Os dias de hoje com tantos jovens desempregados sem perspectivas

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