segunda-feira, 19 de abril de 2021

Ambivalente

 Uma das tarefas mais difíceis que pode ser dada a um lobo é dizer quem ele mesmo é. Lobos não tem espelhos, pelo menos não aqueles feitos por humanos. Objetos de vidro pintados de prata.

Nossos espelhos são os outros lobos e os cães que encontramos no nosso caminho. Lobos não podem ser separados de suas infinitas alternativas, por isso somos “indivi÷duos”. Também não somos coletivos como abelhas ou formigas. Portanto, somos capazes de fazer muito do que precisamos, mesmo sem ninguém da matilha por perto.

Assim sendo há estórias interessantes, edificantes, doces ou engraçadas a serem contadas.

Desta perspectiva podemos querer nos definir pelo que fazemos ou com quem nos relacionamos. Assim sou Chiquitito Subcomandante da Sociedade de Auxílio Mútuo das Espécies, consorte de Lady, pai de Sol e Lua. Instrutor das ciências caninas para jovens lobos. Mestiço. Gaiato. Contador de estórias.

O problema é que sendo mestiço, não vou me resumir ao meu faro de cão. O que tenho de lobo ancestral ainda me chama para a mata nas noites de Lua cheia. E todos nós sabemos o velho ditado: é muito mais fácil contar estórias de lobos do que conviver com os lobos.

Ou seja, para continuar é necessário que me reapresente, a partir de minha linha ancestral: Sou Chronos, filho de Lupina e Rex e hoje vim aqui lhes contar uma história que ultrapassa o espaço e o tempo.

Tudo começou naqueles tempos difíceis em que a fome assolava todas as terras conhecidas. O que sobrou da matilha foi dividido entre aqueles que não seriam capazes de renunciar às sagradas tradições daqueles que já estavam dispostos a fazer qualquer coisa para sobreviver.

Este grupo encontrou aquela espécie que ora chamávamos de donos do fogo, porém o desespero pelos restos os impediu de fugir. Estranhamente, a ligação mágica aconteceu.

Não foi repentina.

Gerações se sucederam até que esta ligação se tornasse espiritual, marcada pelo mesmo cheiro que une as lobas e os seus filhotes.

Saiba, portanto que não são as coleiras que atam os cães aos nossos donos. É algo que poucos humanos são capazes de entender: um cão é metade amor e a outra metade também, só que isso não é suficiente,  o que resta dessa plenitude é o amor que transborda sem controle. Um açude rompido por não comportar a tempestade 

Somos capazes de sacrificar nossos ventres e nossas virilidades só pelo privilégio de ter um quintal para morar.

Cães guardam as casas de seus inimigos, da noite, dos espíritos e das sombras que as rondam.

Cães amam, amam e amam.

Cães dão a vida pelos seus humanos.

Já aqueles que preferiram seguir os velhos caminhos tiveram que se tornar mais fortes, mais ágeis, mais coordenados e mais capazes de enfrentar o frio.

Basicamente podemos estar a frente liderando o time, nas laterais das trilhas rondando o perigo, cerrando a fila no limiar do caminho do Sagrado Eterno que ocorre na décima primavera, ou ainda estar bem no centro, protegido pelos mais velhos durante a jornada. Então, quem você é depende um bocado que qual papel está fazendo na matilha e isso muda com o passar das primaveras.

Como cada passo nessa jornada era um verdadeiro sacrificio não havia conversa entre lobos que não terminasse em rosnados e brigas. Contudo, tal atitude iria dizimar a matilha. Assim nasceu o compromisso ao se entender como lobos. O sarcasmo, entretanto, não conseguimos enxotar de nossas tocas.

Se sou Chiquitito e sou Chronos devo a cada dia superar a dualidade de dois caminhos opostos.

A resposta é ser íntegro apesar de tudo. Não confunda esta palavra com simples honestidade. A honestidade é supervalorizada hoje em dia. Honestidade é um degrau muito baixo na escalada para o Sagrado Eterno. O problema é que tudo está tão degradado ao redor que findamos por superestimar algo que deveria ser mera obrigação.

Ser íntegro é outra coisa.

É ser capaz de juntar seus cacos, tantas vezes espalhados através da vida.

Sou mestiço. Cão e Lobo. Amor e luta. Pai e filho. Sou Chiquitito se você me observar, como quem olha uma gravura desbotada. Sou Chronos como parte da história de todos os que vieram e todos que estão por vir.

 

 

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Ousadia

Como posso falar de Lupina? Só posso definir como ousadia.

Ela era minha mãe, mas quase poderia ter sido minha vó. Só tive chance de ver parte de quatro de suas dez primaveras vividas nesse mundo.

Entretanto, nada me impede de ser ousado, pois posso falar de como ela era madura, doce, alegre, sofrida, divertida, grande, grande e grande. Se quisesse definir em uma palavra corajosa.

Toco na toca. Pois ela seguiu, em seus últimos passos os meus. E foi no meu cantinho buscar abrigo.

Se eu tivesse um pouquinho de senso me calaria. Calar é sempre mais fácil, pelo menos na superfície. Saiba, contudo, que lá dentro cada palavra calada cobra o seu preço sob a luz intensa que ela emanava. Isso pode encher de sombras um coração afogado.

Então fiat lux!

Mesmo que seja uma luz artificial, reflexo do Sol e da Lua que viu essa grande loba pisar na terra, beber da água mais fresca, contemplar o fogo sagrado e respirar o ar do mundo.

Hoje ela me foge das mãos. Ela se reflete na vida de muitas outras lobas, portanto, a Lupina da qual falo é apenas um vulto do que ela foi.

Mesmo assim ela é mais que verdadeira. É lendária. É o coração que pulsa em tantas outras lobas. É minha herança. É o que tenho de decente e me faz ético, toda vez que que a dúvida me assola. É exatamente neste momento minha alma pergunta como eu agiria se ela pudesse me ver.

Deixe Lupina invadir o seu mundo, caso você se abra e veja nela o reflexo de tantas outras grandes lobas que já passaram por aqui, saberá do que digo.

Saiba também que esta Lupina, que construo agora, feita de letras e estórias não me pertence, assim que anuncio o que digo. Nesse momento, ela corre o enorme risco de tomar um pedacinho da alma da loba que lhe trouxe a luz ou lhe abrigou em seu seio. Todos sabem que elas se multiplicam e a única coisa que muda é o endereço.

Portanto, não me diga que a história dela é infinita, porque isso já sei. Mas entenda o que faço neste presente dia: não irei até o infinito para lhe mostrar estrelas. Ficarei aqui na beira da praia e vou lhe mostrar como se conta os grãos de areia.

Simplesmente vou falar o que um grão me disse e vou estimar quantos são necessários para encher a praia.

Estimar, não é exato! Você brada do outro lado do mundo.

Respondo que estimar Lupina, sempre fez toda a diferença para mim.

terça-feira, 13 de abril de 2021

Fênix

Sou Chronos, filho de Lupina e Rex. Se hoje me sinto confortável com um nome tão incomum, saiba que nem sempre foi assim. Por isso, e outros motivos que não vem ao caso, meus amigos me chamam de Chiquitito (o que combina com muito mais um com um vira-latas que nem eu).

Se vou contar minha história, saiba que ela é construída pela luta e pelos amores que tenho; mas também pelas coisas, lugares e amores que perdi.

Hoje só vou lembrar de algo que aconteceu bem antes de minha primeira primavera.

Cantora achou um filhote de rolinha no chão e tentou resgatar. Foram dois dias de minhocas na cabeça e no biquinho do Piupiu. Queríamos retirar ele  do peso de seu corpo sofrido. Assim  ele poderia voar tal qual uma bela canção. Seria um habeas corpus alado.

Mas o Grande Cão tinha outros planos. Assim tive que cobrir terra, folhas e lágrimas meu amiguinho.

No minuto seguinte vejo um voo.

Com certeza você, descrente, vai me dizer que era outra rolinha.

Só sei que deve haver alguma conexão que ainda não consigo entender.

 

Apenas voe.