Uma das tarefas mais difíceis que pode ser dada a um lobo é dizer quem ele mesmo é. Lobos não tem espelhos, pelo menos não aqueles feitos por humanos. Objetos de vidro pintados de prata.
Nossos espelhos são os outros lobos e os cães que
encontramos no nosso caminho. Lobos não podem ser separados de suas infinitas alternativas, por
isso somos “indivi÷duos”. Também não somos coletivos como abelhas ou formigas. Portanto,
somos capazes de fazer muito do que precisamos, mesmo sem ninguém da matilha
por perto.
Assim sendo há estórias interessantes, edificantes,
doces ou engraçadas a serem contadas.
Desta perspectiva podemos querer nos definir pelo que
fazemos ou com quem nos relacionamos. Assim sou Chiquitito Subcomandante da Sociedade
de Auxílio Mútuo das Espécies, consorte de Lady, pai de Sol e Lua. Instrutor das
ciências caninas para jovens lobos. Mestiço. Gaiato. Contador de estórias.
O problema é que sendo mestiço, não vou me resumir ao
meu faro de cão. O que tenho de lobo ancestral ainda me chama para a mata nas noites
de Lua cheia. E todos nós sabemos o velho ditado: é muito mais fácil contar
estórias de lobos do que conviver com os lobos.
Ou seja, para continuar é necessário que me reapresente,
a partir de minha linha ancestral: Sou Chronos, filho de Lupina e Rex e hoje
vim aqui lhes contar uma história que ultrapassa o espaço e o tempo.
Tudo começou naqueles tempos difíceis em que a fome
assolava todas as terras conhecidas. O que sobrou da matilha foi dividido entre
aqueles que não seriam capazes de renunciar às sagradas tradições daqueles que
já estavam dispostos a fazer qualquer coisa para sobreviver.
Este grupo encontrou aquela espécie que ora chamávamos
de donos do fogo, porém o desespero pelos restos os impediu de fugir. Estranhamente,
a ligação mágica aconteceu.
Não foi repentina.
Gerações se sucederam até que esta ligação se tornasse
espiritual, marcada pelo mesmo cheiro que une as lobas e os seus filhotes.
Saiba, portanto que não são as coleiras que atam os cães
aos nossos donos. É algo que poucos humanos são capazes de entender: um cão é
metade amor e a outra metade também, só que isso não é suficiente, o que resta
dessa plenitude é o amor que transborda sem controle. Um açude rompido por não comportar a tempestade
Somos capazes de sacrificar nossos ventres e nossas
virilidades só pelo privilégio de ter um quintal para morar.
Cães guardam as casas de seus inimigos, da noite, dos
espíritos e das sombras que as rondam.
Cães amam, amam e amam.
Cães dão a vida pelos seus humanos.
Já aqueles que preferiram seguir os velhos caminhos
tiveram que se tornar mais fortes, mais ágeis, mais coordenados e mais capazes
de enfrentar o frio.
Basicamente podemos estar a frente liderando o time,
nas laterais das trilhas rondando o perigo, cerrando a fila no limiar do caminho
do Sagrado Eterno que ocorre na décima primavera, ou ainda estar bem no centro,
protegido pelos mais velhos durante a jornada. Então, quem você é depende um
bocado que qual papel está fazendo na matilha e isso muda com o passar das
primaveras.
Como cada passo nessa jornada era um verdadeiro sacrificio não havia conversa entre lobos que não terminasse em rosnados
e brigas. Contudo, tal atitude iria dizimar a matilha. Assim nasceu o compromisso ao se entender como lobos. O sarcasmo, entretanto, não
conseguimos enxotar de nossas tocas.
Se sou Chiquitito e sou Chronos devo a cada dia
superar a dualidade de dois caminhos opostos.
A resposta é ser íntegro apesar de tudo. Não confunda
esta palavra com simples honestidade. A honestidade é supervalorizada hoje em
dia. Honestidade é um degrau muito baixo na escalada para o Sagrado Eterno. O problema
é que tudo está tão degradado ao redor que findamos por superestimar algo que
deveria ser mera obrigação.
Ser íntegro é outra coisa.
É ser capaz de juntar seus cacos, tantas vezes espalhados
através da vida.
Sou mestiço. Cão e Lobo. Amor e luta. Pai e filho. Sou
Chiquitito se você me observar, como quem olha uma gravura desbotada. Sou
Chronos como parte da história de todos os que vieram e todos que estão por
vir.