sábado, 16 de abril de 2022

A pílula azul

 

    Meu filho liga de manhã, cedinho, o fuso horário nos uniu. Nunca o Porto e o Rio estiveram tão perto. Eu estava aguardando a ligação com ansiedade. No décimo de segundo seguinte ele iria me contar como foi a volta ao cinema. Logo, a ducha de água fria: “Não gostei nem um pouco, parece que os roteiristas estavam esgotados, mas o que esperar de uma continuação?”

    Pelo menos não vou ter que gastar, pagando por mais uma plataforma de streaming, pensei desolado.

    Tudo isso é passado, porém também é passado a ferro de engomar o dia em que ele pegou o sobretudo da mãe, um par de óculos escuros e minhas botinas para sair com uma fantasia de carnaval que só o Roberto entendeu.

    Também é passado o dia em que vimos duas vacas exatamente iguais durante uma viagem e falamos simultaneamente: “deja vu”.

    O que o presente – perfeito - me traz é finalmente ver o quarto filme da série (sim! Sou o tipo de otário que paga um monte de plataformas). No dia seguinte ele me liga de novo reclamando de algo cíclico com o qual eu também teria me incomodado, caso tivéssemos a mesma idade e estivéssemos passando a mesma situação. Afinal cansamos de reviver cenas, algumas repetindo a personagem, em outras assumindo papéis diferentes.

    “É como o Neo tomando a pílula azul todo santo dia” (prometo não vai ter outro spoiler). E ao dizer isso ele deduziu que eu acabara de ver o quarto filme da “trilogia”. “Pai, você não tem jeito, não me ouve nunca! Eu não te disse que não valia a pena ver?” Então repliquei que sem repetições não valeria a pena (vi)ver.

    “Meu filho. Se algo está se repetindo em sua vida é sinal de que a lição ainda não foi aprendida”.

    Assim a vida vai seguindo, ou quem sabe uma simulação da realidade. Até acho que insisto em tentar tomar a pílula vermelha e tento dizer para mim mesmo que não preciso da outra.

    Afinal tenho algo que mexe com meu metabolismo e faz dilatar absurdamente um órgão: a pupila; faz pulsar alucinadamente outro: meu coração; e expande aquele que é o mais importante.

    Pelo menos penso que ajo assim.

    Todavia, também se espalham aqui e ali as repetições em tudo aquilo que insisto em não aprender.  

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