segunda-feira, 21 de novembro de 2022

O que aprendi com o Cereja

 Deveria estar surpreso pela notícia na TV: “Bombeiro salva bebê por telefone”. Isso se não tivesse conhecido o Corpo de Bombeiros por dentro e lá a gente aprende coisas como: “alguém ainda pode se esforçar outros 30% quando não aguenta mais”; ou “temos que correr para o lado oposto das pessoas que estão fugindo de um lugar quando tudo dá errado”; ou ainda que “somos chamados quando nenhum outro se predispôs a resolver a situação, seja ela qual for”.

Lembro que vi na telinha o mesmo sorriso cativante que conheci nos meus primeiros anos de profissão, um tal de Nelson, que em nossa segunda casa se apresentava como Cereja.

Só para vocês terem uma ideia da figura basta dizer que ele acabou detido simplesmente porque era incapaz de perder uma piada. Um cara que costumava elogiar os companheiros com um singelo “até que você não é tão burro, só carrega carroça por diversão” Ou ainda que conquistou o coração de minha mãe com menos de trinta segundos de papo.

Os Bombeiros de Nova Friburgo tinham em seu bojo caras geniais em diversos aspectos da profissão. Há um dito que no Corpo de Bombeiros pode se encontrar do palhaço ao astronauta, então minha primeira impressão logo o colocou na posição de bufão. Por outro lado, anos depois ele confessou que pensava que eu teria aprendido a soltar pipa no ventilador e jogar bola de gude no carpete. O tempo se encarregou de nos mostrar o quanto estávamos errados.

O fato é ao ser deslocado para o famoso “Forte Apache da Serra” assim que me formei aspirante a oficial eu tinha toda a teoria socada da minha cabeça. Concomitantemente anos de tropa levaram o meu amigo a ter o que chamamos de manha, algo que não se conquista em apenas uma manhã.

Um dia após um socorro que não havia sido exatamente um sucesso perguntei aos componentes da guarnição o que havia ocorrido de errado, todos outros silenciaram. Cereja, no entanto, nunca foi adepto da ideia de que quando um superior hierárquico fazia uma pergunta sobre desempenho o mais prudente seria elogiar. Teve a gentiliza de me chamar em um canto e disse o que passou a ser meu lema desde então “se quiser ser ouvido fale baixo”.

Só verdadeiros amigos nos ensinam isso. Também posso dizer que só um sábio é capaz de acalmar uma família enquanto mobiliza um socorro e explica com um altruísmo gigante o que fazer para salvar o bebê.

Pelo tempo que passou acredito que esse menino deve estar beirando a adolescência, se eu fosse ele rezaria todo santo dia por um velho bombeiro que foi instrumento nas mãos de Deus para que ainda tenha o sopro da vida.

domingo, 13 de novembro de 2022

Símbolos

 

Seguimos sem o amor por princípio. Até entendo que ficaria difícil levar a sério essa palavra fora do contexto poético, em cartas para a namorada ou em bons dias fofinhos do zapzap. Entretanto, sua ausência grita em nossos ouvidos. Basta saber um pouquinho de filosofia ou ao menos conhecer o lema positivista completo.

Dá até para imaginar a conversa nas casas de Orleans e Bragança tomadas por Deodoro da Fonseca: “o lema ficou muito longo”, ou “tira o amor”, ou ainda “não vão nos levar a sério”. Resumindo lembra muito aquela anedota que explicaria o porquê de o sete ser cortado. “Moisés anuncia as leis ao povo que acabara de ser liberto da escravidão e ao chegar ao sétimo mandamento explica que não deveriam cobiçar a mulher do próximo e um gaiato lá do fundão grita: corta o sete!”.

O problema é que símbolos explicam muito e influenciam mais ainda, outra anedota, esta provinda dos tempos da guerra fria e consequente corrida espacial é muito didática: “Se os russos chegarem na lua primeiro vão pintar ela toda de vermelho, então os americanos vão aproveitar o pano de fundo e escrever: Coca-Cola”.

Já o alemão construído pelo Partido Social Nacionalista explica exatamente como os símbolos são modificados, roubados e ressignificados. Basta trocar a orientação para dizer adeus ao amor proveniente da cruz gamada, um símbolo hindu milenar que traria boa sorte.

Aqui nos cabe o exercício poético para entender o que seria a tal ausência do amor, me socorro com Vinícius que explica “quem sabe a morte, a angústia de quem vive”, ou do Leoni em “noite e dia se completam no nosso amor e ódio eterno”, ou ainda do Lulu que ama calado como quem ouve uma sinfonia.

Começo com o medo, não como oposto do amor, talvez sua ausência. Basta explicar para quem está confortável o que pode se perder. Continuo com fundamentalismo maniqueísta onde só quem faz parte de sua bolha pode ser reconhecido no espelho tão bem cantado por Caetano em Sampa. Assim se clama pelo extermínio do outro, aquele não somos capazes de enxergar nas mesmas águas onde Narciso se afogou por se apaixonar pela própria imagem.

Sob o mesmo símbolo pode se encontrar o reflexo onde reafirmamos o que jamais seríamos capazes de fazer no deserto onde te encontrei, estranha e só. Lá a Loba do capitólio se resume a uma cadela acorrentada, vivendo o que lhe resta de uma Síndrome de Estocolmo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Poesia

Poesia é para tudo.
Tudo que é vívido. 
Tudo que é vivido.

Curriculum Vitae

 Talvez você ache estranho que eu venha a lhe encontrar justo aqui nesse elevador e bem no dia em que finalmente vai se encontrar com o chefe para apresentar suas credenciais. O quê? Não tá pensando que vai ocupar a posição que lhe foi prometida depois de ter feito tudo o que fez?

Sei bem qual é o humor dele desde aqueles dias. Você também sabe muito bem a história, já fui o preferido dele, considerado o mais gato, o mais esperto..., mas sabe como é, o chefe corta nossas asas em pleno voo. Porém devo admitir: não posso reclamar da posição que ocupo desde então, pelo menos não tenho que ficar do lado do otário do Gabriel tocando harpa o dia inteiro. Além do mais nunca gostei do clima frio lá da cobertura, sem contar que a companhia é muito mais estimulante lá pras minhas bandas.

O que? Não está me reconhecendo? Somos tão íntimos! Não lembra que você cansava de dizer que tudo ficava na minha conta? Mas vamos combinar não fui eu que gozava naquele seu pulgueiro predileto, nem mesmo tive a oportunidade curtir aquela viagem para o Havaí que você conseguiu pagar com o desfalque da grana para a merenda dos moleques.

Lembrou agora?

Ah, não manda essa de “a carne é fraca”, tô cansado desse papinho manda outra.

Cara, arruma outro lero-lero para enrolar quem te compra. Não pense que logo eu iria ficar o tempo todo sussurrando em seu ouvido o que fazer a cada instante. Se bem que acho bem divertido aquele desenho animado no qual me colocam no ombro do Pluto para dar conselhos, C sabe bem que não me importo muito com o papel de vilão. Só que nessa altura do campeonato é bem provável que já tenha desconfiado que não é bem assim que as coisas funcionam.

Perdão judicial? Gastou o latim hein, malandro? Só que não acho que você se qualifica.

O que? Claro que não! O tempo ajoelhado não vai lhe ajudar em nada. Na, na, ni, na, não! Os dez por cento que você andou pagando para lhe defenderem hoje não contam muito. Sabe aquela história de que o google sabe mais de você do que sua própria mulher? Então espera até conhecer o chefe! Se bem que no seu caso eu acho que o Pedro mesmo lhe despacha lá do portão. Sinto muito dizer que desde que aquele outro mané resolveu comparar o porteiro com uma pedra ele se encheu todo e acha que é o dono do pedaço. Só para você ter uma ideia ele mandou pintar o portão todo de dourado.

AAAAAh, essa agora? Não adianta tentar botar toda culpa em mim. Sabe aquelas sete “qualidades” que eu gosto tanto? Pois é, você passou com nota máxima em todos os quesitos. Só que na tal da vaidade... nessa aí eu poderia escrever um livro inteirinho só para você, bonitão.

Ah, bebezinho, engole o choro. Depois pega o mesmo elevador e me encontra lá no porão. Não vai ser tão ruim assim. Sabe aquela parada que você gosta e envolve máscaras e chicotes? Vou apresentar uma garota que é uma verdadeira diaba.

 

 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Nero

 Apesar dos pesares devo admitir que os pedidos de bis não são mal nomeados como apenas um RESCALDO, para quem não sabe do que se trata de um rescaldo nas operações de combate à incêndios lá vai uma rápida explicação:

Quando as chamas vivas não mais se encontram presentes é chegada a hora de virar, revirar, re-reviar e re-re-reviar cada uma das peças, dos fardos e das estruturas onde o incêndio sorrateiramente ainda se encontra presente. É um momento de falsa calmaria quando há vários relatos de graves acidentes.

Aqui temos o incêndio em um teatro de operações. O que eram luzes e ribaltas se apresentam em cinzas e fios retorcidos. Apesar da rede elétrica principal ter sido desligada ainda há o risco do que chamamos de gatos, uma série de ligações ilegais. Logo sabemos que elas foram feitas pelo síndico do prédio uma vez que se achava dono, uma figura peculiar que não é muito afeito a seguir os preceitos mínimos de decência e sequer deu a ordem de evacuação da plateia tentando convencer a todos que eram apenas fogos de artifício e que o show não podia parar.

Aqui cabe lembrar que a palavra desastre é derivada da astrologia, uma des-estrela como um mal presságio e uma lembrança de que tudo pode sempre piorar. Afinal todos sabemos que o que é encenado como drama é sempre repetido nas comédias burlescas. E se nada der certo basta vender o imóvel para se transformar em stand de tiro

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Sobre a muralha que se rompe ao som da música

 Você tem um bregete que não sai da cabeça nome dele é corpo caloso (ou coisa parecida), não se preocupe faz parte do seu show, isso tem que estar aí mesmo como se fosse uma garotinha, cansada com sua meia três quartos. Sem isso seus dois cérebros (caramba – mal consigo acreditar que certas pessoas tenham um!) não conseguiriam se comunicar.

Sabe aquela metáfora dois lobos que temos dentro da gente e que escolhemos a qual deles vamos nutrir? Pois é. Se você é capaz de superar uma insistente formação maniqueísta lhe convido a nutrir os dois.

É justamente isso que tenho feito nos últimos seis meses. Traduzindo tenho andado grudado em um violão e mesmo sendo um cachorro velho tenho aprendido um truque ou dois.

Como todo aprendizado este tem me cobrado tempo, disciplina e longas reflexões.

Logo depois do básico algumas canções abrem seus braços logo nas primeiras tentativas. Não é delas que quero falar. Meu gosto por desafios vem me conduzindo por caminhos tortuosos e exigido horas a fio para conseguir tocar de um modo minimamente passável.

Aqui cabe desviar a rota para outra arte: Amo filmes infantis de animação. O que dizer, por exemplo, de Toy Story? Resumo em uma palavra: tempo! Como a técnica de animação usada estava em seus primórdios o time de produção teve tempo para desenvolver um roteiro brilhante e cheio de detalhes encantadores. Então quando há uma reprise não me canso de revisitar o cowboy e o astronauta de mármore, pois sempre há algo novo no velho filme.

Assim vou dedilhando Hallelujah. Lembro ter ouvido comentários sobre a música antes de aprender a tocá-la de que algumas igrejas proibiram sua execução para evitar controvérsia semelhante ao Cálice que trazia em seu bojo o nojo ao cale-se. Confesso que a poesia não se entregou de imediato ao meu coração e as referências bíblicas pareciam desconexas, só que depois de meus dedos quase sagrarem comecei a intuir a relação do eu poético com dúvida e espanto diante do sagrado.

Depois veio Depois que no contexto vivido ganhou outra dimensão ao perceber que despedidas ocorrem em diversas relações humanas. De fato, a Marisa Monte já havia me convidado a um lugar em que há pão em todas as mesas e o sonho nutre o mundo real. Ainda bem que nesse país agora apareceu você.

Voltando ao cinema não há como esquecer a perda trágica do autor de La bamba, no mesmo instante em que minha mão direita aprende uma canção ligeira na qual cada acorde tem uma batida diferente.

Sinatra me mostra o seu caminho por onde passa uma garota que o deixa desnorteado com seu andar ondulatório. O que poderia ser uma mera expressão de um machismo tóxico se transforma em uma coisa mais linda, só que antes ele tem que saber qual é o Tom.

Toquinho traz um colorido de tamanha beleza que nem percebemos que a conclusão de sua aquarela é seu próprio e inevitável fim diante de um menino que chega em um muro. Paula canta sobre uma relação abusiva que a primeira vista parece ser uma história de amor. Hebert Viana expurga suas dores de olhos fechados e mesmo assim encontra uma lanterna. Djavan reconhece os sinais de Almir Sater que vem devagarinho de chalana saboreando massas e maças. Roberto fala que as cartas para seu querido velho não adiantam mais, alerta sobre os espinhos nos caracóis dos cabelos do Caetano sem saber como expressar seu grande amor.

Assim vou caminhando e cantando nas favelas e no senado na esperança de lhe encontrar em Irajá ou Gaporé. Quem sabe se um dia eu aprenda as estradas do sol e possa encontrar o pombo que sonha pelos espaços abertos, livre de seus dolorosos anéis de metal. Finalmente poderei dizer ao menino que viu seus pais se separando que ele não deve carregar o mundo nos ombros e que a reposta é muitas vezes simplesmente: deixa estar.

É provável que seus dois lobos já tenham se perdido nesta cacofonia. Os meus encontraram um instrumento para que eu também possa assim o ser nas mãos de Deus. Então que nessa quadra da história tão lobotomizada que eu traga união onde reina a discórdia.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Um pequeno teste

 Você está andando de bicicleta em uma cidade grande qualquer no Brasil. Estaciona e a tranca para fazer um lanche. Ao voltar para pegar ela percebe que colocou o cadeado errado prendendo a roda ao quadro, como o que pode dar errado vai dar errado ainda mais (dá-lhe lei de Murphy) se dá conta que perdeu a chave.

O que você faz?

Se sua resposta (tem que ser sincera) é que você vai andar arrastando a sua bicicleta até o chaveiro mais próximo sem sequer imaginar que poderia ser incomodado por algum transeunte ou agente da lei, isso me faz saber qual etnia você declarou para o CENSO do IBGE.

Sei que não tenho lugar de fala no assunto, a única vez em minha vida que me senti discriminado foi quando fui impedido de entrar num supermercado, isso aos oito anos de idade, ouvindo o segurança gritar “SAI DAQUI PIVETE!”. É lógico que estava com meu traje normal na época: short curto (herdado do Maninho), descalço e sem camisa. Naquele dia acabei aprendendo o valor das aparências e que deveria disfarçar a origem de pobre vira-latas. O que foi facilitado por não ter herdado tanta melanina.

Tais fatos me rondam justo quando soube que o tal do Novo Ensino Médio traz um tal de projeto de vida e carreira, o que considero ser um nome bonito para dizer “se vira aí, se der errado a culpa é sua”.

Podemos conversar sobre a tal da meritocracia. Por princípio não seria a cor da pele, origem ou classe que deveriam determinar a capacidade de alguém. Entretanto, só estarei disposto a realmente discutir esse assunto depois que todos tiverem pão e livros.

Não sendo assim tudo redunda em um mal disfarçado sistema de castas. Onde as exceções (me incluo) confirmam a regra. E isso deveria encerrar o assunto. Porém prometo não lhe deixar no vácuo sobre o final feliz das duas histórias.  

Arrastei a bicicleta até o destacamento de bombeiros onde peguei um tesourão emprestado da guarnição, um privilégio de quem é veterano do casarão vermelho.

Na ocasião mais distante voltei para casa sem o café que ia comprar. Meia hora depois o segurança do supermercado teve que se esconder de minha mãe que sabia rodar a baiana como ninguém.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

O grilo falante do Júlio

Ter dois ouvidos e uma boca nem sempre foram suficientes para nos ensinar a medir as palavras. Tudo isso vai ficando cada vez mais difícil se nos corredores da torre se acumularem assessores. Assessores são muito comumente tampões de ouvidos.

Reza a lenda que os imperadores chineses tinham o hábito de mandar matar todos os mensageiros que trouxessem más notícias. Custo acreditar nisso, pois um dos principais fatores que sustentam as estruturas em longo prazo, sejam elas de engenharia ou sociais, é a devida manutenção. Para tal se faz necessário saber onde estão aparecendo as fissuras.

Mesmo assim perdi uma enorme chance de ter ouvido um amigo que me disse: “quando o chefe pede uma opinião, na verdade está esperando por um elogio”. Quem sabe se eu tivesse seguido essa cartilha teria recebido algumas promoções ao longo de minha carreira.

A condição do chefe surdo se agrava quando se deixa levar pelo ego, se tornando arrogante e lá vai mais um encastelado capaz de oferecer brioches quando o povo pede pão.

Agora as fissuras no poder estão evidentes. Mesmo assim Édipo se esquece de arrancar os próprios olhos para começar a enxergar o que ocorre além dos muros e dos cercadinhos.

Lá na torre a canalização de esgoto está prestes a explodir, entretanto falta espaço para alguém que diga: “chefe isso pode dar...”. E redunda no momento crítico no qual nem todo perfume francês encomendado é incapaz disfarçar e esconder o que não dá mais pra ocultar.

Tendo olhos, ouvidos e nariz tapados chega o momento em que Midas morre de inanição pois o elemento de número atômico 79 não é capaz de o alimentar.

Reza outra lenda que na mesma biga que Júlio Cesar chegava triunfante em Roma após as campanhas vitoriosas ele tinha um escravo que lhe dizia que tudo aquilo iria passar, se fosse eu aproveitaria para dizer que ele estava ficando careca e barrigudo. Quem sabe isso seria o suficiente para que não tomasse uma facada nas costas, justo de seu assessor favorito.