Ela morava em Carmo, eu trabalhava no Rio, justo quando chegamos aos quarenta de vida havia outros quarenta anos entre nós, vinte meu com ela e vinte dela comigo. Seria o momento certo da crise de meia idade.
O roteiro estava fadado a isso, então poderíamos muito bem nos abandonar como tantos casais e findar como a canção que fala do depois. Só que no meio do caminho havia uma pedra. Ou melhor, um estranho desvio que nos afastou de uma trajetória óbvia. Algo que poderíamos chamar de destino.
Começou quando tomei uma punição geográfica. Aqui cabe uma explicação. Ser oficial do Corpo de Bombeiros nos põe sob esse risco laboral. Funciona da seguinte forma: Basta desagradar um superior hierárquico com algo que não dá para enquadrar no regulamento. No dia seguinte o boletim vem com uma transferência para o outro lado do estado.
Sabia muito bem que iria acabar acontecendo comigo, pois sofro de uma patologia estranha que chamo de sincericídio. Funciona mais ou menos assim: uma língua afiada associada a algum neurônio perdido faz com que eu responda mais rápido do que pistoleiros. Em uma dessas situações retorqui a altura uma dessas gracinhas, tipo quinta série, de um Tenente Coronel quando meu ombro só havia uma estrela. O resultado vocês já deduziram nessa altura do campeonato.
Naquele momento só via o lado negativo da história, longe da família e gastando o que eu não tinha era difícil pensar que algo bom poderia acontecer. Então chega uma mensagem no celular: “Vem comigo meu amado amigo, nessa noite clara de verão”, sem pensar muito respondi “seja sempre meu melhor presente”. E foi assim que a mágica se fez.
Deixa-me explicar de outro jeito: Temos uma brincadeira ao brindar com alguns amigos que é dizer: “Às nossas esposas e nossas namoradas”, então alguém sempre vai emendar de bate pronto “e que elas nunca se encontrem”. No meu caso é bem complicado, as duas são a mesma pessoa. É como se eu tivesse encontrado a Batgirl e a Barbara Gordon justo quando fui defenestrado para tão longe. E tudo porque passamos a falar de nossas saudades completando músicas feitas por outras pessoas. Ou seja, a crise que deveria nos deixar longe estando perto, nos aproximou quando estivemos longe.
Lembrei disso ainda hoje quando peguei o celular e vejo a inteligência artificial perguntando se eu queria uma poesia pronta. De imediato penso o quão pobre alguém tem que ser a ponto de não pagar com lágrimas pelas suas próprias rimas. Apago esse pensamento triste lembrando que as palavras de Beto Guedes, Emílio Santiago, Milton Nascimento, Roberto, Herbert Viana, Flávio Venturini, Chico, Djavan, Caetano e tantos outros cultivaram meu amor.
Então se você precisa de uma inteligência qualquer para escrever algo bonitinho para quem você ama está tudo bem, enquanto isso “cuide bem do seu amor” ... “seja quem for”.