sábado, 27 de setembro de 2025

Psicografado

 Tenho exercitado um bocado minha espiritualidade agnóstica. Não sou ateu, o que é explicado pela origem da palavra gnose, ou seja, não saber. Pois é, cada vez sei menos, ou pelo menos tenho uma noção mais clara de minha ignorância, sem me orgulhar dela.  Mesmo assim vez ou outra me pego trazendo palavras daqueles que já partiram.

Tudo começou com a vontade de ter uma máquina de caraoquê, só que pela sugestão de meu amor, se transformou em um violão. Para simplificar digo que minha vontade de cantar (e tocar) música é quase sempre datada, não vou cair na falácia de que o velho é que é bom. Se faz coisa boa o tempo todo. Contudo, se algo resiste ao tempo, essa força implacável, deve ser no mínimo relevante, com enorme chance de ser extraordinário. 

Como voltei as salas de aula fica cada vez mais claro que minhas referências não são mais as mesmas da maioria dos alunos. O fato é que ouço vozes dos que e foram quase o tempo todo, daí para psicografar é um passo bem curto.

Além do mais tenho, apesar de não ser a melhor do mundo, uma memória doida e ela teima em levar ao meu lóbulo pré-frontal quase irremediavelmente  tido que vivi  quando se trata de música. Olha que nem precisa uma linha melódica sequer palatável. Outro dia, por exemplo, tentei convencer a filha de uma amiga a se proteger ao usar pantins cantando... “Lá, lé, li, Lu Patinadora”. Ou seja, há um risco enorme de que qualquer coisa que digo seja de alguma forma uma referência musical e se isso não fizer muito sentido para você let it be.

A compreensão de que minha busca pelo nirvana passa pela psicografia ocorreu mesmo quando mandei uma canção para um cara (que toca violão de verdade) e ele elogiou: “Remo, que evolução, essa aí é autoral?”. Claro que não era, não sou tão criativo assim, se tratava “Ouça”, cuja interpretação de minha mãe era absurdamente marcante. Se você também é boomer pode ter ouvido na voz de Maysa.

Enfim, virei pontífice, não entre o Céu e a Terra, isso eu deixo para o Papa. E sim entre os que foram e os que estão aqui, na esperança de emocionar os que virão.

domingo, 7 de setembro de 2025

Lábaro estrelado

 Dizem que o tal imperador estava com dor de barriga e parou na beira de um rio, sabe o posto onde tiram dúvidas? Pois é. Desde então essa data virou feriado por aqui.

Hoje, fazendo parte da Associação de Vagabundos Aposentados faz pouca diferença para mim, é apenas dia de tirar mato no jardim. Como está chovendo consegui tirar um grandão com raiz e tudo. Lembro bem que molequinho a gente usava dois desses para brincar de pique, num tipo que times adversários tentavam pegar uma espécie de troféu do outro. Gostava muito dessa brincadeira, problema é que quase sempre terminava em briga.

Agora o texto dá um salto quântico. O ano era 1987, eu havia acabado de passar pelo trauma de ser aluno do primeiro ano de uma academia militar. Quem resume bem essa experiencia é Paulo Freire, em uma fala que vai fazer algumas pessoas que nunca o leram de verdade o odiar, ela diz que: “se a educação não é libertadora o sonho do oprimido é virar opressor”. Eu tinha visto isso ao vivo e a cores. É difícil não odiar a quem agiu assim por um ano, pior ainda é lidar com aqueles que reproduziram esse comportamento a carreira toda. São leões ao lidar com subordinados e gazelas ao olhar para cima.

Havia ainda um ritual de passagem para ser vencido: passar fome e frio perdido no mato, o que pode fazer parte de outra conversa, mas posso adiantar que não foi tão ruim. Antes veio outro ritual inesperado, ter 1,86m foi o motivo: fui selecionado para ser guarda bandeira. Desde então a tal da ordem unida deixou de ser tão chata e cansativa, além de um injustificado motivo de orgulho, logo eu que sempre dava um jeito de estragar as formaturas deixando cair o estranho chapéu de sodado de chumbo ou terminado a marcha descalço sem saber como tinha perdido o sapato no caminho.

Como aprendi os movimentos segui essa sina por uns 10 anos. Na época eu não sabia o quanto era bonito (e magro). O sentimento que me invadia era uma estranha noção que mesmo sendo uma gota estaria por um breve momento representando um oceano.

Mais tarde duras lições me fizeram entender que ela não representa matas e riquezas de um povo e sim as cores de casas reais que o explorou impiedosamente. Momentos ainda piores roubaram o estandarte que tão orgulhosamente carreguei meu ombro.

Mesmo assim volto a cuidar de meu quintal. Hei de correr como quando era mais forte e veloz que qualquer mocinho de caubói. Um cantinho dessa terra ainda me pertence e vou cuidar dele com muita atenção. Faço um gesto incompreensível para quem passa na rua. Grito UUHHHAA e levanto um tufo de mato, do mesmo jeito que fazia o moleque magricelo na beira da favela quando brincava de pique bandeira.