quarta-feira, 22 de abril de 2020



Da Capo

Era 1979. Sétima série, estava entediado, queria me livrar logo da tarefa, pedi para um amigo que tinha conseguido agradar a professora com um verso de pé quebrado:
O Rivelino está de bobeira
O Coutinho já disse
Se ele não melhorar
O Zico vai entrar

Isso pensei, basta falar sobre a Copa do Mundo que ela aceita, mas como é mesmo que se faz para caber na música de “parabéns pra você”?
Eu não tinha entendido muito bem como era que se contava as sílabas, mas bastava cantar, se encaixasse na música ela aceitava e eu poderia voltar a ler “Eu robô” do Asimov que estava chegando num ponto eletrizante.
Já sei:
O Brasil em primeiro
O alemão em terceiro
E a Copa do Mundo
Temos em um segundo.

- Deixa de ser ansioso, Remo, você pode fazer algo melhor.
- Mas, professora, encaixa. E o verso dele que é sobre a seleção a senhora aceitou.
- Aceitei sim. Mas você pode fazer melhor.
Uns meses antes eu queimei todas as pontes entre nós. A minha professora de música foi a primeira autoridade com a qual eu “bati de frente”.
Um grande amigo chegou atrasado, abriu a porta delicadamente, olhou para ela, balançou a cabeça e se sentou em sua carteira tentando não fazer barulho. Um camundongo não seria mais cuidadoso. Então, ela deu uma daquelas broncas que parecem durar mais de meia hora, para fazê-lo se sentir como alguém de meia tigela. Lá pelo vigésimo nono minuto me levantei, cerrei os punhos e gritei com ela: NINGUÉM TRATA MEU AMIGO ASSIM! MAL EDUCADA É A SENHORA!
A coordenadora de turno estranhou minha chegada em sua sala. Nunca tinha me indisciplinado antes, mas eu já não conseguia me defender. O projeto de homem que eu era não conseguiu sair daquela sala, ao atravessar o pátio era um rato e ao chegar na sala uma barata que só chorava e tremia.
Tentei voltar ao presente, mas tudo que eu queria era estar em outro lugar.
Um clique na minha cabeça e lá fui com o texto ainda rascunhado.
O Cruzeiro do Sul
Tem um fundo azul
Que me amara num laço
E me põe no espaço.

Sei que já disse isto antes, as melhores tramas ocorrem sob a égide dos piores vilões. Por isso mesmo o que conto jamais seria um texto realmente dramático. A professora era uma mulher que dedicava várias horas-extra não remuneradas para que a escola tivesse um grupo de percussão. Muito longe do Darth Vader ou do Lex Luthor.
Um dia, logo depois de uma apresentação ela se aproximou e perguntou:
- O que você quis dizer com aqueles versos?
Eu docemente respondi:
- Olhe para cima em uma noite estrelada e você mesma vai saber.
Foi o mais próximo que tivemos de verdadeiro pedido de desculpas mútuas.

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