domingo, 25 de agosto de 2024

Palavras


Passei boa parte de minha adolescência, talvez toda, assim meio sem saber qual era meu lugar no mundo. Então se digo que sei como certas palavras se sentem desajeitadas o digo com propriedade. Poderia até tomar como exemplo a palavra alfarrábio, mas não... Quem tem um nome tão estranho deve saber exatamente o que quer dizer. Outro assunto no qual também me qualifico como um expert, formado na faculdade da vida, baseado em dados que você não quer saber de onde tirei.

Poderia até ter medo de parecer óbvio e correr o risco de perder meu poder auto investido de me apresentar como poeta. Coisa que muitos fazem por aí sem nenhuma responsabilidade com os vernáculos, concordância, métrica ou até mesmo sentido. Mesmo assim não vou escrever que flores de plástico não morrem ou ainda que o amor é o calor que aquece a alma.

Depois das devidas desculpas peço a atenção para que você me diga se também não acha que o sentido das palavras fornecer, fornicar e futricar não lhe parecem trocados. O digo sem medo de plagiar Luis Fernando Veríssimo ao se referir a defenestrar em um texto delicioso com o mesmíssimo tema que abordo agora.

Do mesmo modo toda vez que falam em palavrão eu penso em embargos infringentes, uma tremenda sacanagem que determina que não somos, definitivamente, iguais perante a lei. E tudo depende do quanto você está disposto a pagar para que alguém lhe defenda além dos parâmetros do trânsito e julgado (peraí que fui lavar a boca com sabão).

Tudo isso me ocorre com o simples pensamento de que inhame e queijo tiveram seus nomes trocados na maternidade. Não é possível que algo tão gostoso tenha um nome tão insosso e vice-versa. Vai dizer que quando você acerta na medida da tapioca com café e ainda põe algo derretendo em cima, antes de salivar, não pensa: nhame, nhame.

Pois é.

É exatamente assim que me sinto, em especial em algum dia que estou pronto para me envenenar na padaria da esquina e peço para encher meu pão de sal com mortandela (e antes que você queira me corrigir, seja pela ortografia ou pelo hábito alimentar, saiba que é exatamente o que minha memória afetiva pediu naquela tarde). C não quer não? Mesmo oferecendo assim, prefiro dar uma lambida de fio a pavio, vai que C quer mesmo.   

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Coió de mola


A cena seria comum no Rio de Janeiro na década de 70, um motorista faz uma barbeiragem e o outro grita a plenos pulmões” Seu palhaço!”. Acrescento que há pessoas que sofrem de
coulrofobia, traduzindo, o medo irracional de palhaços. Como simplesmente a-d-o-r-o arte popular esses fatos nunca fizeram sentido para mim.

Iria morrer na ignorância se não tivesse aprendido que há uma profunda diferença entre palhaços e bufões. Afinal, como já sabido linguagem e história são fundamentais para uma compreensão mínima do mundo que vivemos. Então vamos lá.

Palhaços são figuras frágeis que representam a condição humana, eles convidam o público a rir deles. Bufões, por outro vão escarnecer dos presentes e quando confrontados têm ao seu favor o chamado animus jocandi, que em tese os permitia bufar até de reis (pelo menos até quando não fossem enforcados). São como luz e sombra que convivem lá no íntimo de cada um de nós.

Tudo isso apareceu quando meu melhor amigo me chamou de “coió de mola”. Depois de rir até deslocar a mandíbula tive a curiosidade de pesquisar. Logo o Google me socorreu dizendo que se trata do nome brasileiro de um brinquedo conhecido como Jack in a box, o que remeteu a segunda pesquisa... Bem, sabe aquele bonequinho que salta de uma caixa para dar sustos? Pois é.

Resta saber se se trata de um palhaço ou um bufão. A resposta é difícil. Dessas onde texto e contexto se encontram. Pois depende de quem faz a piada e para quê.

Para não lhe deixar na mão vou oferecer dois mapas, um para adultos e outro para crianças. Para essas fica a seguinte lição: amigos riem com você, idiotas riem de você. Para aqueles a dica: palhaços lhe ensinam empatia, bufões ridicularizam.

Encerro com o seguinte convite. Quando você souber de alguém que conta piadas racistas, misóginas, daquelas que incentivam a bater em homossexuais, fazem galhofas de quem passa fome ou está doente; sinta-se à vontade de xingar. A palavra certa é: bufão!

sábado, 17 de agosto de 2024

Três medalhas


Ao Lopes cujo exemplo nem o tempo pode apagar

Hoje irei entregar uma medalha ao seu verdadeiro dono. É um objeto feito de metal e honra que me outorgaram em uma cerimônia chique. Dessas em que não sei como me comportar.

A outra que eu estampava com injustificado orgulho afirma que fui um bom aluno. O que é uma mentira deslavada. Naquele tempo eu só queria que as férias chegassem logo e só fazia o mínimo que pudesse para esse momento não se atrasasse ou se perdesse em qualquer décimo de segundo. Parte de mim odiava a Academia, onde a pressão muitas vezes se transformava em depressão. Penso que eu deveria a levar para deixar na escola em que lecionei por boa parte de minha vida. Só para apontar para quem estuda que aprender vale a pena.

A terceira foi feita de tempo e prata. Posso até achar que essa é minha de verdade pois me dizem que tenho quase 60. Entretanto, o tempo não se possui. O tempo não é. O tempo não está. São uvas desidratadas e a água que se esvai em tal pia que não permite que um espelho se emende ou que o carvão vire madeira.

Caminho com a farda lisa, como um recruta que acabou de chegar, dentro dela carrego um coração sem nada além de amor e esperança de que meu amigo seja exemplo e luz para quem está por vir.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Ninguém vai chegar com tudo o que tem

 Se eu soubesse que fazer terapia é tão maneiro teria começado antes, parece um bom filme com histórias que dão pra rir e chorar. Ontem cheguei, finalmente a duas questões que realmente me levaram ao consultório do Dr. Luis.

- O sonho recorrente no qual eu chego só de short no Quartel Central para, ao cruzar o Corpo da Guarda, perceber que todos outros estavam com uniforme de gala; e

- A quase briga que tive com dois caras que insistem em andar com cachorros soltos.

A segunda questão é fácil e até já tinha matado a charada antes mesmo de atravessar o portal. Cheguei ao ponto de não ter que educar mais ninguém. Quem tem filho grande é elefante, quem tem filho com bigode é gato. Já os meus não precisam mais dos conselhos que eu poderia dar, enquanto quem tá andando por ai procurando encrenca pode a encontrar em outros lugares.

Já com a seminudez sonhada entendo que a toca do coelho é mais funda e ele passa por mim correndo com um relógio de ponteiros acelerados. Ao segui-lo o sonho ganha uma nova roupagem, nele estou só com uma sunga preta, justo o menor uniforme que um bombeiro pode usar. Saio aflito de um quarto onde padece meu primeiro comandante, alguém a quem devo nada menos do que a vida de meu filho, aflito em busca de ajuda passo por outros bombeiros e bombeiras que não me reconhecem, para no fim chegar ao auditório A, onde todos outros oficiais estão vestidos de cinza, estrelas, gemadas e espadas. Quase nu sou apenas alguém ridículo, cujos apelos não podem ser ouvidos.

Acordo estranho e só, mas em paz. Na cabeceira um exemplar ilustrado da Odisseia, nele marcado duas passagens. Uma do começo da aventura, para fugir do Ciclope Ulises, o trickister, diz que seu nome é ninguém. Próximo de Ítaca Odisseu, o herói, atravessa o Mediterrâneo a nado, como estava nu, Leocoteia a Deusa da pureza, vem em forma de gaivota tece um pano branco para preservar seu coração exausto.

Sem nada, chega o Ninguém, ao fim de sua jornada.   

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Fênix

Estou passando uma dificuldade estranha entre sustenidos e bemóis, se trata de uma realidade inescapável: mãos de 25 cm tentando tocar músicas delicadas, dessas que você ouve em elevadores ou no toque de celulares chiques.

É lógico que os dedos do monstrinho aqui teimam em esbarrar nas cordas erradas, o que combinado com minha vocação para o desastre tornam as execuções desagradáveis até para quem não tem ouvido absoluto. Já me dediquei a esticar as soluções óbvias como tocar as escalas com cordas de nylon, ajeitar alguns acordes para que fiquem mais simples ou simplesmente cantarolar que se você disser que eu desafino amor... naquela versão nada educada.

Andei a procura de um instrumento digno de um homem de aço que se adequasse ao meu jeitinho de jóquei de 110 Kg, só que os fabricantes teimam em fazer bons instrumentos com o braço mais fino que minha carteira no fim do mês, fazendo com que o indicador, médio, anelar e até o mindinho (que é o nome científico do mínimo) fiquem se acotovelado em vagões lotados da Central do Brasil.

Então, mesmo não tendo um vintém na carteira, decidi visitar um luthier na esperança de ser um freguês chuva, do tipo: moço só vim dar uma molhadinha. Mas sabe quando você entra em um museu pela primeira vez? As madeiras, os detalhes em metal, os sons, os cheiros, a obra de arte que só aparece depois de muito trabalho e dedicação?

Minutos antes a Aninha havia me treinado ao sair de casa com o seguinte mantra: Paciência, no ano que vem você compra. Fui repetindo na cabeça não vou comprar, não vou comprar, não vou comprar. não vou comprar.

Então o cara me diz: posso fazer um do jeitinho que você quer: Folk D-28 com cutway (não vou comprar),  Tampo de abeto alemão solido (não vou comprar),  lateral e fundo de pau-ferro solido (não vou comprar),  braço em Mogno (não vou comprar),  escala e cavalete em jacarandá da Bahia (não vou comprar),  tensor dupla ação (não vou comprar),  rastilho e pestana de osso  (não vou comprar),  tarraxas gotoh (não vou comprar),  cordas Elixir 010 (não vou comprar), finalização com verniz  fosco (não vou comprar), hardcase de luxo com bordado ( não vou comprar). Em síntese resisti bravamente.

Então ele puxou um ás da manga e disse: personalização de assinatura na 12a casa da escala com uma Fênix de metal. Comprei! Meu Deus, vou apanhar quando chegar em casa!

Ele vai demorar uns oito meses pra ficar pronto, espero que você me parabenize, pois estou grávido de um violão.