quinta-feira, 31 de outubro de 2024

CAVALO DE TRÓIA

 A história da guerra mais contada começa com uma maçã e termina com um cavalo, essa odisseia começa com um cavalo e termina com um menino.

Entretanto, antes preciso contar uma anedota, essa envolve um cavalo velho e um poço mais ainda. O tal equino cai na estrutura que não funcionava há anos. O dono pensa uma forma básica para se livrar dos dois, então ele manda seus escravos jogarem terra até que ela se encha. Aqui cabe lembrar que não existe essa coisa de senhor de escravos bonzinho. O plot twist (carpado) acontece quando o animal se movimenta em L até conseguir saltar do poço, trazendo um moral da história de nunca desistir.

Deveria ser lindo. Só que não funciona. A lama, na prática torna a flutuabilidade complicada, a despeito do aumento de sua densidade, formando o que chamamos de areia movediça. Portanto, a história do cavalo velho que se supera é uma metáfora e só. É algo como ser atropelado por um trem por ler nas entrelinhas.

Volto ao cavalo. Esse não é de madeira, nem se supera milagrosamente flutuando na lama. O pobrezinho precisaria de uma guarnição de bombeiros para o resgatar. Infelizmente o Aspirante que comandava a guarnição acreditou em um subordinado e decidiu puxar o animal pelo pescoço, pois cavar sob ele e por uma barrigueira ia dar um trabalho insano. No fim o pangaré morre. Sei de tudo isso porque é o erro que vai nortear os outros 29 anos de minha carreira. Mea culpa, mea tão grande culpa.

Revisitei essa cena tantas vezes em minha cabeça que perdi as contas. É como se o Diego Souza tivesse feito o gol no Cássio. Só que isso volta ao terreno mágico. O bom e velho E SE...

Responsabilidade é quando entendemos que não há soluções mágicas. Bem-vindo a vida adulta seu Remo. O que decidi fazer, então, em homenagem aquele cavalo foi exigir o melhor padrão de resposta a cada socorro em que estivesse. A partir de alguns princípios básicos, tais como: na dúvida entre trote e socorro real coloco o bloco na rua. Se não há risco a vida sempre seguir a ação de maior segurança para a guarnição. Se for para pôr o pescoço a prêmio que assim seja, com coragem, mas sem correr risco desnecessário.  

Ontem saí da terapia e chorei quando entrei no carro no caminho de casa. A vida sacrificou um nobre animal para que eu me tornasse um bombeiro de verdade. Antes de chegar, todavia, a Aninha me liga e pede para comprar maçãs. Paro no mercado, entro. Contudo, antes de chegar na prateleira um lindo molequinho passa por mim correndo, um verdadeiro raio. Olho para trás para ver se há algum adulto para abraçar ele. Ninguém... só minhas pernas cansadas o poderiam deter antes que chegasse na rua. Pensei rápido e alcancei o pimpolho.

Esse menino pode até sonhar em ter um pônei. Mas foi um pangaré que o salvou.

sábado, 12 de outubro de 2024

O chapeuzinho da vovó

 O livro que mais me ensinou literatura não era didático, pelo menos não na área citada, era um livro sobre psicologia que destrinchava a relação entre a Chapeuzinho e o Lobo. Nele a figura paterna foi seccionada entre o Lobo e o Lenhador.  Eles são os polos opostos de um pai ausente da história e quem sabe da vida da menina que se perde no seu próprio inconsciente.

A partir de então o limiar de uma percepção sutil colidiu à minha frente. Deste modo Wilson e House, da série homônima se revelaram ser diferentes aspectos de um único médico desintegrado entre o conhecimento técnico, a relação com os paci(m)entes e os outros profissionais. Pois se assim não fosse os diálogos seriam internos e incompreensíveis ao público. O que vamos combinar estragaria a dinâmica da série e os conflitos deliciosos. Todavia, essas dimensões ultrapassam de longe o maniqueísmo comum dos contos de fadas após o crivo da Disney.

Outra possibilidade é a transformação de um ser em um objeto, algo como o Cortiço de Aluísio de Azevedo, o telefone no filme Atração fatal ou a bola do náufrago, Tom Hanks. O destaque especial vai para o Hal de 2001. Contudo, o mesmo não pode ser dito do replicante do Blade runner, pois esse era certamente mais humano que as unidades de carbono que o perseguiam.

Há até a possibilidade que esse pequeno texto lhe abra uma porta sem direito a volta, então se perca na Matrix e lembre o que o Neo aprendeu sobre conhecer e atravessar portas.

A cesta de doces vai formar a inteminável aliança entre a vó, que nutriu a mãe e vai ser cuidada pela neta. Se trata de uma trindade humana. Enquanto a figura masculina foi separada entre o bem e o mal, a feminina o foi através do tempo. Assim menina, mulher e velha se espremem na floresta em busca de um caminho de uma paz improvável entre dois lobos famintos.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

KAOS

Vou fazer o possível para não trazer spoilers a essa nossa conversa, mas posso dizer que a série está sendo ESPETACULAR, durante uma cena qualquer me perguntam se eu estava curtindo as referências, respondi que cada easter egg fazia derreter minhas papilas gustativas. Porém, se você faz questão de que os detalhes das personagens fossem cuidadosamente mantidos em uma suposta pureza dos ideais helênicos, prepare-se para a decepção.

Hera há eras se manteria fiel ao marido, pois ela era a esposa perfeita, portanto capaz de mirar o olho cego para as infidelidades do maior gigante gasoso do sistema solar, sua fúria (por falar nisso adorei as fúrias) iria sempre se direcionar aos filhos bastardos. Dionízio não se preocuparia em outra coisa que não o próprio êxtase. Hades e Posseidon seriam bem mais espertos. Eurídice corresponderia ao amor de seu bardo. Zeus e Minos, bem, esses são babacas mesmo.

Então, o que me faz pensar que o espírito mitológico foi preservado?

O topo do pódio vai para o fato de que o mito vivo é um pulmão e não uma pedra, suas variações são confirmações de um todo, assim se você quiser contar um mito qualquer para um amigo ou uma criança (melhor ainda se seus amigos não têm corações que envelhecem) sinta-se à vontade de acrescentar suas verdades.

Em um segundo a representação de Chronos como um personagem que cabe no punho de seu assassino é simplesmente genial.

Um terço para rezar pelas vítimas oprimidas, estejam elas em Troia, na Palestina, em qualquer país Africano, da América Latrina ou governado por Monções.

Um quarto e suas paredes para o diálogo entre pai e filha, marido e mulher e todas outras intimidades.

Um quinto de toda a riqueza para a revolta dos Inconfidentes ao ver como o poder leva o desastre as bases das Pirâmides.

Finalmente a inescapável metáfora ao perceber que estamos falando do aqui e agora, pois a natureza humana não mudou durante os séculos. Eu mesmo estou versando sobre deuses antropomorfizados para não dar nome aos minotauros.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Cosmos

Meu engenheiro predileto tem transformado fumaça em algo parecido com um sabonete Phebo, não é um trabalho qualquer. O tal do gás carbônico pode nos levar a uma catástrofe sem precedentes, então pode até ser que ele esteja salvando um pálido ponto azul, que era como Sagan chamava essa nave que nos leva a um futuro incerto.

Refleti sobre isso enquanto (ou)via um podcast, no qual o interlocutor reclamava de que algum idiota teria enviado uma nave aqui da Terra com diversas saudações e até música do Tom, e ainda dizendo a nossa localização. Afinal um alienígena “do mal” poderia saber exatamente onde nos encontrar, dando uma daquelas lacradas lindas que só podcasters sabem fazer, para mostrar o quanto são espertos.

O tal cara responsável por mandar essa mensagem em uma garrafa não tinha essa preocupação, você pode achar ele aqui mesmo no primeiro parágrafo. De forma alguma penso que ele possa nos ter posto em risco, por uma quantidade de motivos tão inumeráveis que nem vou me arriscar em começar. Talvez uma simplificação seja necessária, partindo dos parâmetros que temos do único planeta no qual já pus os pés. Há uma enorme chance de que a espécie dominante de um sistema solar qualquer seja um predador (até aí estou me escondendo debaixo da cama), todavia se algum dia esta seja capaz de viagens interestelares, também terá a capacidade de auto destruição. Enfim, só dá pra chegar lá quem é capaz de uma evolução ética compatível com a tecnológica.

Assim a Voyager já deve estar bem longe com essas preciosas informações sem me causar qualquer temor. O risco está aqui mesmo, entre guerras, relações de consumo, ganância, intolerância e nossa incapacidade de realmente entender o quanto estamos agindo de um modo autofágico.

Na mesma época em que o outro talento de Sagan desabrochava em sua incrível capacidade de divulgar ciência; um famoso comediante dizia para outro, não menos famoso, que não estava nem aí para a extinção do mico leão dourado. Espero que VOCÊ esteja, pois não estamos dando fim a só uma ou outra espécie, chegamos ao ponto de destruir florestas e recifes de corais inteiros. O que também nos coloca na lista de espécies em risco de extinção.

Cabe sempre lembrar que todo o filme de tragédia global começa com um cientista que não é ouvido. Mas para não terminar esta história de um modo tão triste vou contar pra vocês algo tão antigo, mas tão antigo, que é bem capaz de ser uma novidade. Em um dos meus episódios prediletos de Jornada nas Estrelas a tripulação da Enterprise se esforça para devolver um piloto da Força Aérea ao seu próprio tempo nesse pálido ponto azul em pleno século XX. Todo esse esforço fora feito para não interferir na história o que causaria um paradoxo de fluxo temporal (adoro quando posso usar essa expressão para mostrar o quanto sou nerd!), pois o filho dele iria fazer algo essencial para a humanidade.

Sabe o engenheiro do começo desse texto? É meu filho!