Eu passo mal quando leio certas coisas, sou como a personagem de Jerry Lewis que não conseguia estudar medicina pois sentia todas as dores relatadas por seus pacientes. Lembro ter tido dificuldades para ler o manual de mergulho por imaginar cada um dos acidentes acontecendo comigo ou mesmo sentir um tremendo alívio ao fazer as contas de uma questão de cinemática onde um pato escapou de ser atropelado por um avião por muito pouco. Por isso mesmo até hoje não passei da página dez do Príncipe de Maquiavel.
Mesmo assim tenho me imposto um exercício de autotortura
e de cinco em cinco páginas venho arrastando a leitura de Escravidão do
Laurentino Gomes.
Quando a leitura é metafórica tudo parece mais
palatável, a literatura nos faz passear pelo suicídio de jovens em Romeu e
Julieta, conta a chacina de uma trupe em o Nome do Vento, conta como uma maçã apodrecida ficou grudada nas costas de um homem que se transformou em uma
barata no texto genial de Kafka. O mesmo processo ocorre no humor que nos faz
tornar as perdas até aceitáveis. Nem as cantigas de roda escapam da violência: dona
Chica é testemunha ocular do atentado sofrido por um felino.
Laurentino não nos dá essa trégua. Cada uma das
histórias degradantes e inimagináveis aconteceu sob a égide das instituições de
estado e religião, com as bençãos do tal do mercado, este ente impessoal que dá
a chance de dizer: o que está acontecendo não é comigo apenas comprei umas ações.
É nesse momento que volto as minhas aulas de história
que tentavam tornar a chaga da escravidão como um mal necessário, permeadas de
justificativas inverossímeis.
Volto a metamorfose já citada, o primeiro passo para
nossas justificativas passa pela coisificação ou desumanização do diferente: o
seu oponente não é gente, ou necessita de sua generosa atuação civilizatória,
onde você aprisiona um deus único capaz de lhe levar aos pícaros do paraíso e
jogar o outro nas profundezas.
Nesse momento lembro das palavras finais de um livro “didático”
copiado ipsis litteris por um colega do ginásio, pois é assim que se fazia para
tirar um dez. Nele a queda de uma civilização pré-colombiana não ocorreu devido
a canhões nem pela gripe trazida pelos europeus, mas pela falta de deus no
coração daquele povo inculto.
Não se enganem, é nessa caravela que estamos
navegando agora mesmo.
Gratidão pela profunda reflexão...
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