segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Mestre Wladimir

Então lá estou, logo eu, participando de uma aula de yoga.

Muitas pessoas já me disseram que isso me faria muito bem, e que meu motor de Ferrari poderia encontrar, finalmente, algum equilíbrio.

Dentre essas pessoas está bem ao meu lado, com seus movimentos lentos, a que mais importa: minha gata, minha musa, minha tudo. Observo ela com o canto do olho e sei que está levando tudo muito a sério.

Não consigo.

O professor é um tanto barrigudo para parecer um faquir, e como o conheço muito bem espero que saia dali alguma piada no qual ele se aproveitaria da formalidade do momento em que nos ensina a respirar de verdade. Em minha imaginação ele quebraria o clima estendendo as mãos para um lado ao dizer: “João beija minha mão, José beija meu pé... não fuja Nicolau”.

Pois assim é o melhor amigo que tenho no mundo.

Simplesmente um cara capaz de rir e incapaz de me dar um presente decente: na lista estão livros dos quais só ele gosta, uma caixa de alfajor que demorou tanto a chegar nas minhas mãos a ponto de ser acompanhada por uma enorme colônia de fungos e o famoso jardim zen; que de vingança devolvi no aniversário dele.

Acredito que as formas de medir uma amizade passam por três eixos:

- a quantidade de piadas internas;

- a capacidade de concordar e discordar (sem esquecer que cor, neste caso vem de coração); e

- principalmente, a presença nos momentos difíceis.

Além disso não posso deixar de lembrar o que um dos famosos filósofos da modernidade diz: somente pessoas éticas têm amigos, bandidos só posuem capangas, o que torna impossível resistir ao terceiro e mais importante critério.

De vez em quando recebo uma ligação e do outro lado da linha ouço uma tonelada de xingamentos, respondo com tudo que aprendi nas ruas vicinais à favela do Muquiço, pois é assim que se responde a tal impropério. Então pergunto: “acalmou?” ele responde: “sim, estava precisando disso – abraço irmão”.

Antes de desligar o celular vejo a foto dele abraçado com um cachorro e o dizer: “descubra quem é o cachorro aqui”. Realmente não sei a resposta certa. Somente cães são capazes de tamanha lealdade, enquanto o mundo ganha um novo colorido quando penso que a amizade é o sal da Terra.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Um amigo e seus passarinhos

Em seu caminho brotam flores e frutos

As aves cantam

Depois voam

Elas não lhes pertencem

Como nada a ninguém

 

Elas lhes tocam o coração e partem

O coração se parte

O coração se abre

Para o meu amigo que não tem gaiolas

domingo, 18 de julho de 2021

Torcedor

A palavra vem de torcer que é o que as jovens faziam com seus lenços brancos, cujo propósito original seria acenar para os seus jogadores prediletos. Então a pergunta: “por quem você torce” se tornou o modo oficial de entender uma paixão incompreensível.

Aí alguém lá longe no campo chuta um objeto esférico, que teima em quicar e rolar (aquele que chamo de Vossa Excelência), e este toca as redes de um modo peculiar, é a pesca de um enorme atum.

Delírio.

Orgasmo coletivo por procuração.

Você não chutou nada. Não cabeceou nada. Não treinou a semana inteira. Não entrou em campo com um tornozelo que mais parecia o pilar do World Trade Center. Não tomou cotovelada do zagueiro de dois metros e noventa. Não tomou um cartão amarelo porque reclamou. Não sentiu seu pulmão quase explodir na corrida. Não deu um biquinho no momento certo.

Seja como for você grita!

E também o narrador que vai dizer: “lindo, lindo, lindo”, ou “ripa na chulipa”, ou ainda (meu preferido) “olha lá, olha lá, no placar!”.

E também o empresário que trouxe um cara lá da Itália para ver o seu atleta.

E ainda o dirigente que via as chances de reeleição minguando.

E o patrocinador que vai ver sua marca em destaque.

E o político que vai usar a camisa do time na próxima live.

Não importa: você vai abraçar o  cara ao lado, um maluco que você nunca viu antes e pular que nem pipoca.

Esse gol é seu.

sábado, 17 de julho de 2021

Meu querido filho

Dentre diversas coisas pelas quais passamos uma delas, que não me esqueço, foi o fato de que tive o privilégio de ser professor.

Naquela época eu brincava contigo e dizia que era ótimo ter um aluno no qual eu podia dar uns cascudos sem que o pai reclamasse. Então, a frase “poooorrrr faaaavooooorrrr Francisco!” Ficou famosa no Colégio Rogelma.  

Sei que no todo valeu muito a pena, superando a máxima de que dois bicudos não se beijam; uma vez que personalidade marcante, senso de justiça próprio e teimosia parecem ser atávicos.

Com o passar do tempo tive a chance de lhe explicar que a soma dos quadrados dos catetos equivale ao quadrado da hipotenusa, e aprendi que eu sou um geômetra que formou um algebrista. Também lhe ensinei que a Terra é Geoide, para somente com a série atual da franquia Star Trek você finalmente entender que devemos ir aonde nenhum homem jamais esteve. Passei muito tempo lhe doutrinando para finalmente nos encontrarmos na mesma torcida, mas ainda cabe a você aprender sozinho a lidar com as próprias derrotas. E recentemente tenho lhe ensinado que as palavras o vento leva, só que as suas colocações me mostram que hoje você tem muito mais clareza de como lidar com seus desafios profissionais do que eu jamais pude.

Também aprendi. Aprendi muito. Entretanto, vamos combinar que hoje não estamos aqui para falar de mim.

Hoje quero lhe ensinar a última lição antes de você se transforme em um trintão, e como é uma lição difícil você vai ter um ano inteiro para ruminar a simples ideia que vou lhe passar: Você bem sabe que em inglês você não vai ter 29 anos, você vai to be 29. Eis aqui meu segredo: os ingleses foram muito mais sábios... os anos não lhe pertencem, no máximo você pode ESTAR por ali em um breve momento.

Então: Viva!  Curta! Aprenda! Siga adiante!

Esse momento também vai passar.

Quanto a pertencer, saiba que pouquíssimas coisas são suas. E uma delas é o meu coração.

domingo, 27 de junho de 2021

Navegando

 Não sou um remo que rema

Sou um remo que rima

As palavras que não me pertencem

Assim que comunico a ação


A meta é a metáfora

O pulmão da mente

Quando entra é inspiração

Quando sai é ex...piração


Exausto me posto

E venho a público pelo avesso

Trago a alma para a rua

Nua, crua e finalmente sua.

Ódio

Um dia vi um lobo falando bem dele dizendo basicamente que ele era um líder que falava o que pensava.

Não esqueço do alerta da Lupina: há lobos que se vestem com a pele de cordeiro, mas também há lobos que se vestem com pele de lobo.

Enfim, é preciso mais que intuição para avaliar o lobo que chega. Cansei de ver lobos velhos se enganarem sobre o caráter dos outros como se fossem filhotes.

Alguns sinais são óbvios:

- Se não trata uma loba como a encarnação da Grande Loba.

- Se valoriza demais a matéria.

- Se perde o controle com facilidade.

- Se tem todas as respostas sobre o que é sagrado, mas desconsidera qualquer visão diferente.

- Se cansa falar de sua própria integridade, mas de um jeito ou outro acaba tirando vantagens.

Ou ainda:

- Se um lobo fica o tempo todo lembrando quem ele é, provavelmente ele mesmo não sabe.

Mas principalmente:

- se traz a fagulha do ódio nos olhos.

Outros detalhes são mais sutis, e se resumem em uma intuição diáfana e um cheiro podre que não conseguimos definir muito bem.

Assim foi a chegada do Rasteiro.

Eu imaginava que ele não conseguiria enganar a ninguém. Tão direto era o seu ódio e a maneira com a qual ele sempre desprezou as seguidoras da Grande Loba. Sei que já disse isso antes: não há nada de errado em seguir o Grande Cão, mas há muito de desprezível naqueles que não respeitam a centelha do sagrado nos outros.

E assim ele trouxe a semente do ódio, travestida em culto ao Grande Cão.

O ódio se espalhou por todas as terras.

Mas de tudo o que mais lamento foi a corrupção chegar aos corações dos inocentes e dos simples.

Cães e o lobos que antes amávamos hoje rosnam quando passamos. E se não tem motivos para nos odiar, inventam. Eles não têm muito a ganhar com isso. Mal sabem que o ódio é filho da ganância. É um ferrão que fere a quem atinge, mas também mata a abelha.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Totó

Um dia eu estava morto de fome.

Não tinha opção, ou me aproximava da fogueira para comer restos ou não conseguiria dar mais um passo.

Ao invés da agressão recebi uns tapinhas na cabeça e mais comida do que eu tive em um mês.

Dizem que ele não conhece cheiros e não sabe uivar e que o cheiro dele lembra uma galinha molhada.

Só que de um jeito estranho sei exatamente o que ele quer dizer.

Várias noites passaram.

Logo entendi qual deveria ser meu trabalho: proteger meu humano toda vez que ele fosse dormir.

Espanto qualquer um que possa pôr em risco sua vida terrena ou espiritual.

Com o tempo fui me deitando cada vez mais perto.

Mesmo que ele faça algumas coisas estranhas, como me mostrar os dentes, é claro que sei que ele me ama. Sinto o cheiro de ocitocina cada vez que ele uiva de um modo estranho com um som que parece Thothou.

Em um dia frio ele me abraçou a noite toda.

Se isso não é amor, não sei o que é.

Sei que você deve achar estranho, mas digo sem nenhum medo de errar, até poque a Grande Loba tem formas estranhas de se manifestar: aquele humano é meu filhote.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Matilha

 Muitas vezes me pergunto: qual é o tamanho de minha matilha?

Não é pequena.

Tenho muitos irmãos e irmãs, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas, pais e filhos, primos e primas.

Sangue fala alto, mas não é essa a fronteira final.

A terra onde nascemos diz muito, mas quem se restringe a ela sempre acaba se tornando em alguém mais preocupado em odiar quem é diferente do que em amar a quem é próximo.

Então, fica a pergunta que teima em se repetir: qual é o tamanho de minha matilha?

Sei que mesmo tendo tantos irmãos adotei tantos outros.

Sei que o sangue daqueles que sequer conheci trazem no fundo a mesma cor e essência.

Sei que a Terra é uma só.

Então minha matilha não deveria ter tamanho.

As terras em que passei, os irmãos que adotei e o sangue que passou pelo meu coração dão a noção exata da medida do que não se pode medir.

Passagem.

É isso! A matilha pede passagem.

E pelo mundo no lufar de um vento que leva para o alto meus sentimentos de pertencimento são sementes de dente-de-leão que se espalham.

E a toca nos espera em no único cantinho de chão que realmente nos pertence.

Um lugar onde somos todos iguais.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Hiato

Hoje preciso de um hiato.

Não é Chronos o eu lírico.

Sou eu mesmo.

Meu nome é Remo Noronha, maluco, de Albuquerque.

Tenho me escondido atrás dos olhos de um lobo.

Mas hoje não é o homem Aranha, é o Peter Parker. Não é o Super-Homem é o Clark Kent o dono da fala.

Não tenho como dizer o que digo sem ser quem sou. Não importa o quanto Chronos seja rico, tudo que quero expressar vem da pobreza de ser eu mesmo.

E nesta semana tanto deve ser contado que não há como ser feito a não ser a partir de meus olhos, mesmo que a luz dos olhos seus tenha outra história totalmente diferente parta contar.

Então lá vai.

Em ordem de prioridade. Eita pleonasmo! Prioridade é o que vem antes.

Meu amor tira onda. É bela, é grandiosa, de maior, independente. Vacinada!

Andei mais de 300Km para que ela tivesse o que é de direito a qualquer ser humano. Preferimos nos deslocar no espaço a nos deslocar no tempo. Sem esquecer que todos nós somos viajantes do tempo: de hoje para amanhã.

Ela é especial. Você também é.

Segundo. Passei a semana fazendo vídeos para contar o que vivi. Foi o resumo de trinta anos em cinco dias

Que o que aprendi, quem sabe poderá servir de trilha para quem vier.

Alguém que está na luta hoje me achou digno o suficiente para servir de exemplo.

E vocês sabem minha opinião: Oficial Superior que não serve de exemplo não serve para nada.

No processo achei três estrelas. Estrelas geminadas.

Elas contam que um pouco antes de chegar no Carmo fui a capitão. Justo no dia que soube por pessoas que estão na luta aqui e agora que minhas, do passado, valeram a pena.

Então vou até os Bombeiros de minha (nova) cidade. Peço para chamar o oficial de dia. Se as coisas não mudaram absurdamente ele deve ser capitão, ou estar próximo de chegar. Ao me ver me diz que vai vir a ser o dono das três estrelas logo ali adiante.

Então, seja o dono daquelas que foram minhas.

Logo após a passagem de comando das estrelas, me despeço, me escondo no carro e paro diante do Grupamento do Corpo de Bombeiros de Araruama.

Canto baixinho a canção que o Roberto me ensinou, e que diz assim: “Ah! Eu vim aqui amor só pra me despedir...”

Finalmente tenho a honra de dizer adeus de uma forma da qual posso me orgulhar.

Agradeço aos amigos que quiseram me ouvir.

E ao tenente (à beira de ser promovido) que teve a paciência de receber um pequeno presente de um veterano.

Posso fechar as portas as minhas costas e abrir as que estão adiante.

Palavras


Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência, a vossa!

 

Fere mais que punhal. Consola do pior vendaval. Sussurro de amor ou berro de dor. É a força que vem de dentro. O mais profundo juramento.

A palavra nos chama. É detalhe que introjeta a ação ou exprime emoção.

A palavra pode vir entre outras em contradição ou conformidade e no tecido das linhas serem os nós que fazem a trama. Palavra é coerência e por que não? Palavra é coesão.

A palavra pode se conjugar a ação e unir as mãos em uma oração.

A palavra é um. As palavras são dois. A palavra é o infinito ou o minguado arroz.

As palavras se juntam a quem traz a ação. A palavra modifica. A palavra localiza. A palavra te diz o quando, o quanto, o nada, o muito. A palavra é o exagero. É detalhe. É esmero.

A palavra determina, mas só se quiser. A palavra de antes dá substância a quem depois vier.

A palavra é o coração de quem não veio. Há palavras que hão de impedir a falta de imaginação de quem só quer se repetir.

Suas qualidades são palavras, seus defeitos também. Há palavras que resplandecem o belo do olhar de quem vem.

Palavra é matéria, é madeira. A palavra é a mãe de tudo.

A palavra é Pai. É ação, estado ou transição. É o ser em movimento. A palavra é cerne da finalidade de quem a diz. O meio de expressão. É o verbo no princípio. 

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Perguntas

 Rex não era íntegro. Não confunda esta palavra com honestidade. Honesto ele era. E não era pouco. Integro é outra coisa: é quando conseguimos juntar todas as nossas partes espalhadas pelo chão. Rex era no mínimo bipolar.

Quando bebia das águas era divertido. Ele sempre pedia para eu contar a mesma anedota de sempre, um jogo de palavras infantil que ele mesmo havia me ensinado. Contudo era incapaz de repetir de tanto que enrolava a língua que trazia o cheiro acre das águas do esquecimento.

O que ele jamais esquecia era de me trazer um pouquinho dos pedaços mais apetitosos provenientes das caçadas. Mesmo assim eu tinha medo, nesse estado ele parecia muito com a figura do humano da carrocinha, o temor mais profundo que qualquer filhote pode carregar no coração.

Quando se abstinha era sábio e um tanto circunspeto. Nesses momentos se transformava em um filósofo formidável e o lobo mais inteligente que eu já havia conhecido. Afinal, em suas andanças ele havia conhecido muitas terras e não há nada no mundo que ensine mais do que conhecer novos espaços, diferentes lobos, cães e homens. No frio da noite ou no calor escaldante das Areias do Tempo. Lobos têm olhos, focinhos e ouvidos, mas não são todos que usam. Rex tinha estes recursos muito aguçados.

Outra forma de aprender é mítica. Dizem que os homens têm umas caixas que se abrem e são capazes de revelar o mundo para eles.  Tais objetos mágicos seriam capazes de os fazer viajar sem sair do lugar e preservar a sabedoria dos que partiram para sempre. É lógico que eu não acredito nisso: se eles tivessem, de fato, algo assim tão poderoso jamais fariam tantas besteiras.

Foi para essa versão, mais reservada de meu pai que perguntei o que era o Sagrado Eterno, esperando por uma resposta que ultrapassasse o “Sagrado Eterno não se explica, se vive” que a Lupina tanto insistia.

Então ele olhou para mim e respondeu cautelosamente:

“Chronos”, ele me disse - já que nunca se referia a ninguém usando seus apelidos – “tanto perguntei esta mesma questão para finalmente compreender que o Sagrado Eterno é diferente para cada um que o vive”.

“Há aqueles que acreditam que o Sagrado Eterno começa depois dos portões dourados um pouco antes da Lua, mas não é possível chegar lá usando este corpo que temos”.

“Outros pensam que voltamos para a natureza em um ciclo sem fim”.

“Já ouvi dizer que o Sagrado Eterno não existe e o que devemos preservar a memória das lutas”.

“Há também quem acredite no sábio do Leste e diz que devemos nos desvencilhar da vaidade e do desejo”.

“Já conheci um velho lobo de manto negro como a noite. Ele contava as histórias de sua versão do Sagrado Eterno, cantada em uma melodia ritmada que fazia quem estivesse ao redor entrasse em transe”.

“Gosto também do que ouvi no mosteiro onde contavam que houve um sábio que veio das Terras entre os Rios, com sua mensagem de amor”.

“Qual delas é verdadeira”, perguntei como se isto pudesse ter uma resposta simples. Rex replicou simplesmente: “Não sei. Mas sei que devemos ter por sagrado tudo aquilo que for sagrado para outro lobo, cão ou humano”.

A outra pergunta veio automática: “Em que você acredita, papai?”. “Acredito que é hora de você dormir”.

Você pode até pensar que eu havia ficado sem resposta. Isso se você não sabe que os filhotes sabem muito mais de seus pais pelo que observam do que pelo que dizem. E o que eu via no Rex eram muitas horas em silêncio. E o silêncio diante dos mistérios é uma forma poderosa de oração.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Ambivalente

 Uma das tarefas mais difíceis que pode ser dada a um lobo é dizer quem ele mesmo é. Lobos não tem espelhos, pelo menos não aqueles feitos por humanos. Objetos de vidro pintados de prata.

Nossos espelhos são os outros lobos e os cães que encontramos no nosso caminho. Lobos não podem ser separados de suas infinitas alternativas, por isso somos “indivi÷duos”. Também não somos coletivos como abelhas ou formigas. Portanto, somos capazes de fazer muito do que precisamos, mesmo sem ninguém da matilha por perto.

Assim sendo há estórias interessantes, edificantes, doces ou engraçadas a serem contadas.

Desta perspectiva podemos querer nos definir pelo que fazemos ou com quem nos relacionamos. Assim sou Chiquitito Subcomandante da Sociedade de Auxílio Mútuo das Espécies, consorte de Lady, pai de Sol e Lua. Instrutor das ciências caninas para jovens lobos. Mestiço. Gaiato. Contador de estórias.

O problema é que sendo mestiço, não vou me resumir ao meu faro de cão. O que tenho de lobo ancestral ainda me chama para a mata nas noites de Lua cheia. E todos nós sabemos o velho ditado: é muito mais fácil contar estórias de lobos do que conviver com os lobos.

Ou seja, para continuar é necessário que me reapresente, a partir de minha linha ancestral: Sou Chronos, filho de Lupina e Rex e hoje vim aqui lhes contar uma história que ultrapassa o espaço e o tempo.

Tudo começou naqueles tempos difíceis em que a fome assolava todas as terras conhecidas. O que sobrou da matilha foi dividido entre aqueles que não seriam capazes de renunciar às sagradas tradições daqueles que já estavam dispostos a fazer qualquer coisa para sobreviver.

Este grupo encontrou aquela espécie que ora chamávamos de donos do fogo, porém o desespero pelos restos os impediu de fugir. Estranhamente, a ligação mágica aconteceu.

Não foi repentina.

Gerações se sucederam até que esta ligação se tornasse espiritual, marcada pelo mesmo cheiro que une as lobas e os seus filhotes.

Saiba, portanto que não são as coleiras que atam os cães aos nossos donos. É algo que poucos humanos são capazes de entender: um cão é metade amor e a outra metade também, só que isso não é suficiente,  o que resta dessa plenitude é o amor que transborda sem controle. Um açude rompido por não comportar a tempestade 

Somos capazes de sacrificar nossos ventres e nossas virilidades só pelo privilégio de ter um quintal para morar.

Cães guardam as casas de seus inimigos, da noite, dos espíritos e das sombras que as rondam.

Cães amam, amam e amam.

Cães dão a vida pelos seus humanos.

Já aqueles que preferiram seguir os velhos caminhos tiveram que se tornar mais fortes, mais ágeis, mais coordenados e mais capazes de enfrentar o frio.

Basicamente podemos estar a frente liderando o time, nas laterais das trilhas rondando o perigo, cerrando a fila no limiar do caminho do Sagrado Eterno que ocorre na décima primavera, ou ainda estar bem no centro, protegido pelos mais velhos durante a jornada. Então, quem você é depende um bocado que qual papel está fazendo na matilha e isso muda com o passar das primaveras.

Como cada passo nessa jornada era um verdadeiro sacrificio não havia conversa entre lobos que não terminasse em rosnados e brigas. Contudo, tal atitude iria dizimar a matilha. Assim nasceu o compromisso ao se entender como lobos. O sarcasmo, entretanto, não conseguimos enxotar de nossas tocas.

Se sou Chiquitito e sou Chronos devo a cada dia superar a dualidade de dois caminhos opostos.

A resposta é ser íntegro apesar de tudo. Não confunda esta palavra com simples honestidade. A honestidade é supervalorizada hoje em dia. Honestidade é um degrau muito baixo na escalada para o Sagrado Eterno. O problema é que tudo está tão degradado ao redor que findamos por superestimar algo que deveria ser mera obrigação.

Ser íntegro é outra coisa.

É ser capaz de juntar seus cacos, tantas vezes espalhados através da vida.

Sou mestiço. Cão e Lobo. Amor e luta. Pai e filho. Sou Chiquitito se você me observar, como quem olha uma gravura desbotada. Sou Chronos como parte da história de todos os que vieram e todos que estão por vir.

 

 

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Ousadia

Como posso falar de Lupina? Só posso definir como ousadia.

Ela era minha mãe, mas quase poderia ter sido minha vó. Só tive chance de ver parte de quatro de suas dez primaveras vividas nesse mundo.

Entretanto, nada me impede de ser ousado, pois posso falar de como ela era madura, doce, alegre, sofrida, divertida, grande, grande e grande. Se quisesse definir em uma palavra corajosa.

Toco na toca. Pois ela seguiu, em seus últimos passos os meus. E foi no meu cantinho buscar abrigo.

Se eu tivesse um pouquinho de senso me calaria. Calar é sempre mais fácil, pelo menos na superfície. Saiba, contudo, que lá dentro cada palavra calada cobra o seu preço sob a luz intensa que ela emanava. Isso pode encher de sombras um coração afogado.

Então fiat lux!

Mesmo que seja uma luz artificial, reflexo do Sol e da Lua que viu essa grande loba pisar na terra, beber da água mais fresca, contemplar o fogo sagrado e respirar o ar do mundo.

Hoje ela me foge das mãos. Ela se reflete na vida de muitas outras lobas, portanto, a Lupina da qual falo é apenas um vulto do que ela foi.

Mesmo assim ela é mais que verdadeira. É lendária. É o coração que pulsa em tantas outras lobas. É minha herança. É o que tenho de decente e me faz ético, toda vez que que a dúvida me assola. É exatamente neste momento minha alma pergunta como eu agiria se ela pudesse me ver.

Deixe Lupina invadir o seu mundo, caso você se abra e veja nela o reflexo de tantas outras grandes lobas que já passaram por aqui, saberá do que digo.

Saiba também que esta Lupina, que construo agora, feita de letras e estórias não me pertence, assim que anuncio o que digo. Nesse momento, ela corre o enorme risco de tomar um pedacinho da alma da loba que lhe trouxe a luz ou lhe abrigou em seu seio. Todos sabem que elas se multiplicam e a única coisa que muda é o endereço.

Portanto, não me diga que a história dela é infinita, porque isso já sei. Mas entenda o que faço neste presente dia: não irei até o infinito para lhe mostrar estrelas. Ficarei aqui na beira da praia e vou lhe mostrar como se conta os grãos de areia.

Simplesmente vou falar o que um grão me disse e vou estimar quantos são necessários para encher a praia.

Estimar, não é exato! Você brada do outro lado do mundo.

Respondo que estimar Lupina, sempre fez toda a diferença para mim.

terça-feira, 13 de abril de 2021

Fênix

Sou Chronos, filho de Lupina e Rex. Se hoje me sinto confortável com um nome tão incomum, saiba que nem sempre foi assim. Por isso, e outros motivos que não vem ao caso, meus amigos me chamam de Chiquitito (o que combina com muito mais um com um vira-latas que nem eu).

Se vou contar minha história, saiba que ela é construída pela luta e pelos amores que tenho; mas também pelas coisas, lugares e amores que perdi.

Hoje só vou lembrar de algo que aconteceu bem antes de minha primeira primavera.

Cantora achou um filhote de rolinha no chão e tentou resgatar. Foram dois dias de minhocas na cabeça e no biquinho do Piupiu. Queríamos retirar ele  do peso de seu corpo sofrido. Assim  ele poderia voar tal qual uma bela canção. Seria um habeas corpus alado.

Mas o Grande Cão tinha outros planos. Assim tive que cobrir terra, folhas e lágrimas meu amiguinho.

No minuto seguinte vejo um voo.

Com certeza você, descrente, vai me dizer que era outra rolinha.

Só sei que deve haver alguma conexão que ainda não consigo entender.

 

Apenas voe.


sábado, 27 de março de 2021

Apito para cachorros

Abelhas veem ultravioleta, imagino que isso deve facilitar a enxergar flores, tal é a capacidade adquirida em consequência da evolução das espécies. Digo isso de uma vez, pois se você acredita em criacionismo como tese cientifica chegou a hora de parar de ler. Não sou o tipo de autor do qual você vai gostar. Então, não perca o seu tempo.

Do mesmo modo cães sentem cheiros e ouvem sons que não somos capazes de compreender. Esses seres lindos também são capazes de entender cada sentimento que escondemos em nossas palavras.

O que resta à espécie Homo sapiens como grande vantagem é o poder da comunicação. Não somos nada diante de um elefante ou um leão. Assim como gravetos isolados não suportam qualquer carga, mas se os colocamos juntos eles são inquebrantáveis. Ou seja, somos capazes de motivar uns aos outros de maneira decisiva, de um modo próprio.

Isto sim é uma poderosa metáfora. O problema é que ela foi usada antes por pessoas nem um pouco bem-intencionadas, a pesar de sempre estarem falando de família, moralidade, Deus todo poderoso e retidão; enfim valores que também achamos bem bacanas.

É incrivelmente fácil juntar pessoas ao redor de palavras. O problema é que elas são sempre multifacetadas, então nos cabe perceber quando soa algum apito próprio para cães. Afinal, se o sinal é disparado de tal modo que só o Rex pode ouvir há o sério risco de você ser destroçado no processo sob as mandíbulas de pitbull.

Penso nisso quando ouço os versos inocentes que dizem que samba Lelê precisava é de umas boas palmadas, ou quando uma risadinha é feita com KKK, quando alguém estica o canto dos olhos e fala “japa”, usa a palavra melanina sem nenhum contexto biológico ou ainda quando o antigo símbolo de ok quer mostrar a superioridade de uma raça.

Me permitam ser um pouco mais explícito voltando a Samba Lelê e perguntar por que ela mereceria umas boas palmadas. Afinal, a Samba Lelê é uma menina levada? Não ficaria melhor de vida em uma realidade alternativa onde não existisse a Princesa Isabel? Ela é gay? Ela foi na passeata errada e deve sentir em sua pele cacetetes de borracha e balas de plástico? Ou simplesmente por que é mulher de malandro?

Sei que parece um exagero. Só que ovos de serpente também são metáforas.

Escrevo isso sob o alerta de que eu favoreço aqueles que se alinhavam com o que tornou a Venezuela no que é hoje, o que poderia ser diferente se pusessem a mão na consciência em 1990, quando tudo isso poderia ser evitado. Penso, todavia, que parecemos mais com a Alemanha de 1923.

De qualquer forma continuo achando que extremos têm tudo para dar errado. Prefiro sinais que sejam amplamente conhecidos por seres humanos, tais como ramos de Oliveira, que por sinal era o sobrenome de meu pai.

domingo, 21 de março de 2021

Etimologia?

 

Para Átila Noronha, que me chamou atenção para o fato.

 

A verdade é libertadora, mas ao contrário do dito popular a mentira tem pernas longas e ágeis; até porque as pessoas aumentam... e inventam. Sei que uma boa estória jamais pode ser desfiada por algo banal como a verdade. Só que esta máxima só vale se considerarmos uma metáfora como realmente é: uma metáfora.

Dito isto vamos logo estabelecer que não:

Cadáver não vem de carne dada aos vermes.

Foró não vem de for all.

Ok pode até ter vindo de zero killed, porém não há certeza sobre isto.

E definitivamente aluno não vem de sem luz.

Pelo que sei que mitômano vem de mito, mas isto passa pela compreensão rasa, onde não colocamos os devidos pingos nos ii. O que há de verdade nos mitos nos faz voltar ao conceito de metáfora, pois quando queremos que ensinamentos espirituais estejam agarrados aos fatos acabamos de cair no truque do fundamentalismo.

Tudo isto me chega como um raio quando vejo alguém defendendo que a Terra é plana, pois é um PLANeta! Ora bolas, planeta vem da palavra errante em grego.

Sei que tudo isto são apenas palavras. E palavras não podem machucar.

Mas não podemos esquecer que está escrito: “no princípio era o verbo”.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Sobre Tróia e Matrix

 


Duas mortes me chocaram por motivos opostos em temas mitológicos (se é que já posso tratar Matrix assim). A derrota de Heitor e a queda daquela personagem loira que foi unplugged, sem que o Neo pudesse fazer nada.

Juro que pesquisei, para saber o nome da personagem para facilitar que você se encontre aqui no meu texto, porém como sou um bocado analógico é claro que não achei. Só que aqui eu tenho um bom motivo: Matrix é tão f, mas tão... (desculpe minha falta de vocabulário – fodástico mesmo) ao ponto de dar pouca relevância a um tema que me choca até hoje.

Tudo bem, vou lhe explicar melhor. Estou falando daquela cena em que o cara que traiu o grupo começa a tirar o plug de quem ainda está na Matrix e o Neo fica só vendo um a um morrer, impotente. Então aquela loira diz algo como “assim não!”, mesmo assim ela desfalece como se fosse um saco de batatas.

Sacanagem! Ela era uma guerreira e merecia cair atirando, no melhor estilo bang-bang.

Cabe aqui dizer que tenho uma relação bem razoável com a derrota, poderia citar Darcy Ribeiro dizendo que eu odiaria estar no time que venceu cada uma de minhas batalhas perdidas, mesmo que os dragões sejam moinhos de vento. Ou melhor ainda: rolar de rir com as crianças que respondem ao famoso “é canja de galinha, arranja outro time pra jogar na nossa linha” com “parreira, parreira, parreira de chuchu, o nosso time perde, mas não fica jururu”. Mas repito, ela merecia ter caído em uma boa luta.

O problema já foi detectado pelos Engenheiros do Havaí em duas passagens: “satisfação garantida, obsolescência programada, eles ganham a corrida antes memo da largada” e “muito prazer, me chamam de otário,..., por amor as causas perdidas”.

Perder faz parte. Já que é para falar de derrota não vou fugir da raia e opinar sobre o famoso 7X1. Para mim não foi nada demais. Apenas um resultado esportivo. Derrota de verdade foi o quanto se roubou para fazer estádios. E não digo isso para opinar que não deveria haver grandes eventos por aqui. Podemos ganhar muito, com um potencial turístico gigantesco. O que atrapalha de verdade é a nossa vocação para sermos roubados.

É isso vou ficando por aqui. Não tenho muito mais o que dizer.

Só me resta a obrigação de um parágrafo que justifique o título. Então eu digo que preferia o meu corpo derrotado sendo arrastado por três dias e três noites, diante do choro de meu pai no alto da muralha.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Sobre Romanos, a Cruz Céltica e o círculo trigonométrico

Meu amor traz na pele uma tatuagem. Tatuagem não é uma coisa qualquer. Os Romanos a chamavam de estigma, assim poderiam saber de qual legião vinha cada soldado, então o soldo pago em sal poderia ter total controle, eles realmente sabiam como organizar tudo. Por isso voz digo: em Roma faça como os Romários (ou quase isso).

O problema é que quando o soldado chegava a General todos sabiam de onde ele vinha. Aquele militar não havia sido indicado pelo Senado, ele vinha da tropa: era estigmatizado! Isso era realmente complicado nos mais altos círculos. Porém, tendo eu mesmo vindo da classe que anda aos mil, posso até imaginar que o respeito que lhes era negado nas cortes era garantido pela tropa.

A tatuagem de meu amor é temporária, por isso mesmo ultrapassa o espaço e o tempo. Tem algo de espiritual, pois as sete marcas do grande mestre também são estigmas. Marcas do sofrimento impingido pelos Romanos (então nem sempre faça como os Romários!), duas delas ficavam nos punhos, pois a pele da mão não suportaria o peso do torturado.

E como é esta marca? Para responder, basta seguir instruções bem simples: trace uma linha reta na vertical, outra na horizontal, finalmente um círculo com o centro no encontro dessas retas. Então chegamos à Cruz Cética, ou caso você preferir ao círculo trigonométrico.

Este pode lhe lembrar que a vida é cíclica e a cada dois K pi tudo volta ao que era antes, seus valores oscilam, são as ondas do mar e da natureza mais profunda da matéria. E bem sabemos que matéria é mãe, é Mater. Ele dá as voltas das horas e das órbitas. Mostra onde está o pêndulo que faz os opostos se alternarem.

Aquela é espírito, pontífice vertical que nos permite ter os pés na Terra e os olhos no além. É matéria horizontal, lembrando que não vale em momento algum dizer que a carne é fraca. 

Assim como matéria e energia têm em comum a fórmula de Einstein, matéria e espírito se encontram no círculo quaternário que é o coração humano.

Meu amor traz isso tudo na pele.

A pele que faz arrepiar a minha.

A tatuagem é temporária.

A eternidade também.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

SHADOW OF SHELDON

Não sou um simples fã. Por um motivo não menos simples: sou nerd até a base nitrogenada mais escondida de meu DNA. Então, minha identificação com o quarteto de The Big Bang Theory não é de forma alguma casual.

Dois em especial me deixaram marcas profundas, o Leonard e o seu amor desengonçado pela Penny já seria o suficiente para me fazer cair de amores pela série. Entretanto, é o magricela feioso que mais me chama a atenção.

Sheldon é uma de minhas sombras e sempre me lembra que quando não sou humilde e solidário me dou mal.

Assim como a ele fique a vontade em me definir como terrivelmente chato, principalmente quando quero ser didático e é exatamente o que vou fazer agora.

Não uso a palavra sombra somente para fazer o trocadilho que se encontra no título aí em cima. Este é um dos aspectos do inconsciente pontuado por Carl Jung. A partir das observações ele concluiu que a psique possui intensas energias, muitas das quais escapam nossa visão consciente, como a água passa por uma peneira. 

Deste modo, um desses nossos próprios aspectos pode desenvolver o arquétipo da sombra. Quando este é indesejável podemos, por exemplo, projetar em outros na tentativa de expurgar os nossos defeitos, entregando-os aos inimigos como quem os oferece um cavalo de madeira grávido de soldados gregos.

Por outro lado, quando nos tornamos conscientes deles podemos tirar grande proveito. E qual não foi minha enorme surpresa quando um de meus melhores amigos decide me comparar justo ao... Sheldon!

Poderia esperar tiro, porrada e bomba, pois é certo que somente verdadeiros amigos nos avisam se estamos com um terrível mal hálito! Todavia, quando abro o vídeo vejo o Young Sheldon, ateu convicto, convencendo sua mãe a continuar acreditando, por entender que isso era fundamental para a sanidade dela.

Sim! Há um menino, há um moleque em meu coração. Sei que ele é arrogante, egocêntrico, mimado e desprovido de empatia, mas ele também é o reizinho que concede o título de Sir ao cavaleiro que luta contra os moinhos de vento.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

 

Tem gente que sofre, tem gente que se adapta. Zé era um sobrevivente e faria tudo o que é necessário para se adaptar.

O sistema está aí e não há muito o que se fazer sobre isso. Então, o que lhe cabia fazer era fingir ser bem comportado para ganhar a cota toda.

Ele realmente não entendia para que tanta revolta e costumava zombar dos meia-tigela. Portanto, vê-lo denunciar aquele outro roubando manga logo depois de tomar a caneca de leite não causou nenhum espanto ao feitor.

E tanto informou sobre os maus feitos dos outros que ele mesmo acabou sendo promovido. Sua subida nas escadas da vida foi meteórica e logo lhe deram um chicote para desempenhar melhor o seu nobre trabalho.

Engana-se quem pensa que o pelourinho na Praça do Meio era usado para escravos. Somente endividados, ladrões e prostitutas tinham o privilégio de serem açoitados pelo Procurador Geral. Dos outros escravos da fazenda ele mesmo cuidava amarando-os na acha do chiqueiro.

Bom mesmo eram as gurias que se aproximavam dele para evitar a força de sua chibata. Porém, as que ele preferia eram aquelas que resistiam aos seus encantos e lhe levavam a doce obrigação de sentir a força de seu açoite. Para essas as manchas de sua calça de algodão eram as verdadeiras testemunhas de seu prazer.

Tudo ia muito bem até o dia em que se distraiu e tocou nas mechas louras de Nha Moça.

Mão esquerda amputada!

Tem gente que sofre, tem gente que se adapta. Zé era um sobrevivente e faria tudo o que é necessário para se adaptar.

Definitivamente ele não precisava da outra mão para segurar o açoite.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Sonhos

 

Desde que cumpri minha missão no Corpo de Bombeiros um sonho recorrente tem me assombrado:

Chego no portão do Quartel Central só de short e descalço. Está prestes a acontecer a formatura da espada e todos já estão no pátio com uniforme de gala, tenho que correr me escondendo ao máximo para chegar no alojamento e pôr a farda correta.

Se isto não é assustador para você, provavelmente nunca cumpriu o serviço militar.

Mesmo rompendo com o tecido do texto, preciso de um interlúdio antes de seguir.

Sonhos me dizem muito. Fiquei meses impressionado com as paisagens oníricas da pré-adolescência e uma delas me levou ao terraço de minha casa em Marechal Hermes:

Acordei assustado com meu próprio grito, pois, encostada em meu peito, lá estava a poderosa e imensa espada de Ogum e seu fio estava prestes a iniciar um corte que vinha do infinito até as bordas de meu coração.

Obviamente ambos os sonhos têm algo a me dizer de um modo profundamente simbólico, pois de fato não tenho nenhuma peça das fardas do CBMERJ, já passados seis anos de reserva. Sei que há vida pelo mundo afora, mesmo para quem não é bombeiro. E ainda, se não tenho poderes sobrenaturais sobre qualquer outra pessoa, ao menos entendo uma espada que toca meu ser e vai até o céu é uma ponte.

A última mensagem de Morfeu veio um pouco diferente na noite passada:

Estava colocando o uniforme de prontidão e já usava o coturno, a calça e cinto, estava prestes a colocar a gandola e o capacete quando fui interpelado por um jovem oficial que queria me contar uma história. Ouvi com entusiasmo, porém no final lhe disse que o personagem da história que ele contava era eu mesmo. Então, me despeço dele e vou para o pátio para a passagem de serviço sabendo que em pouco tempo eu poderia ir para casa.

A interpretação é tão óbvia que decidi não a fazer desfilar aqui em respeito à inteligência de quem lê.

Digo apenas que vários símbolos vêm invadindo minha vida ultimamente, não sei se por sincronicidade ou pelo simples fato de que tenho andado acordado por aí.

Dentre estes a cruz céltica tomou conta de tudo, se você não sabe o que ela é apenas desenhe um círculo encravado no coração de uma cruz.

Enquanto o círculo segue em suas voltas completas e infinitas unindo o começo e o fim a cruz une o que é horizontal como o mar e vertical como o fogo.

É como se a luz de Deus em seu círculo solar abençoasse a mãe que se deita e pai que se ergue em uma ponte entre matéria e espírito. Pois assim o foi, é e será.

domingo, 24 de janeiro de 2021

INIMIGO MEU

Para Marco Resende o amigo que me trouxe um ramo de oliveira 

Um dos maiores amigos que tenho responde pelo apelido de Geriba. Ele herdou o epíteto do alienígena que se opunha ao personagem do Dennis Quaid. Estávamos no Curso de Formação de Oficiais do Corpo de Bombeiros e tivemos uma questão tão importante, tão pivotal, que eu nem sei mais do que se tratava.

O tempo passou e as feridas se transformaram em cicatrizes diáfanas que nem percebo mais. Porém, quando as chagas ainda estavam abertas um dos pontos que me fez repensar toda aquela rivalidade veio do filme de ficção científica com jeitão de blockbuster.

Após tentarem se matar mutuamente os dois opositores entenderam que somente juntos eles poderiam sobreviver a um terreno mais que inóspito.

Em um momento crucial o alienígena feioso recita belas palavras de seu livro sagrado, para depois perguntar ao astronauta para qual Deus ele dobrava os joelhos. A resposta foi... Mickey Mouse!

Na cena seguinte em um acesso de raiva Geriba amaldiçoa o que seria mais sagrado para Dennis Quaid: Mickey Mouse. Este ao invés de retribuir a agressão tem um ataque... de risos!

Após tentarmos nos agredir mutuamente recebi meu estranho amigo no quartel que servi por mais de dez anos. Passados os tempos de cadete, finalmente entendemos que somente juntos nós poderíamos sobreviver a um terreno quase tão inóspito.

Para isso precisamos rever nossos conceitos do que seria sagrado durante a Academia e assim amadurecer. Afinal, amigos não são necessariamente aquelas pessoas que concordam em tudo e sim aquelas que toleram e aprendem com as diferenças.

Também tive que reavaliar meus conceitos sagrados, sem fundamentalismo e entender que algumas vezes eu tolamente também rezava para Mickey Mouse.

Mudando totalmente de assunto, lhes convido a se posicionar na Távola Redonda um segundo após o arrebatamento causado pelo Graal. Nesse instante os cavaleiros se comprometem a busca do símbolo sagrado. Para isso é necessário passar pela mata, onde não há qualquer trilha, pois o caminho é único para cada um deles.

O meu é recheado de metáforas e de encontros improváveis. Não espero que você entenda, do mesmo modo que não entendo o seu, mas talvez, só talvez podemos rever as nossas posições sem tanta tensão e ver o quanto do Mickey Mouse está lá, agarrado em nossas visões fixas e imutáveis do que vem a ser sagrado. Assim se encontrarmos o Graal poderemos beber chope nele juntos.  

 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

CRENÇAS

 

Muita gente me pergunta em que acredito. Acredito em ciência.

Observe que não tenho nada contra religião e a sua espiritualidade. Podemos, todavia, discutir a filosofia ao redor de qualquer instituição humana, porém também entendo que quando a coisa fica dogmática é a hora certa de pisar no freio e respeitar as suas crenças, mesmo que me pareçam absurdas.

Também sei que o mesmo respeito nem sempre é recíproco.

Então não! Não espere que eu perca meu tempo tentando fazer você entender que coisas como TERRAPLANISMO, CRIACIONISMO, HORÓSCOPO, WICCA, ALIENÍGENAS DO PASSADO, USO DE MEDICAMENTOS SEM PESQUISA, ANTI-VACINISMO ou REPITILIANOS podem ser levados a sério como teorias científicas.

Nada contra se você acredita em qualquer uma dessas coisas, faz parte do show. Também tenho um lado muito doido cultivado por Isaac Asimov, Patrick Rothfuss, Homero, Jung, Machado de Assis, Bernard Cornwell, Arthur Clarke e (minha preferida) Jornada nas Estrelas; porém se você quiser conversar sobre esses assuntos saiba que o papo será regado a chope sem nenhum compromisso de chegar a qualquer TEORIA DA CONSPIRAÇÃO.

Se você teve paciência de ler até aqui vou lhe dizer do que se constitui minha espiritualidade. Poucas certezas me restam, posso enumerar algumas aqui:

Deus existe e fui testemunha de vários milagres. Ele ama a diversidade. Sua obra é todo universo, portanto ela não se esgota na fala de nenhum ser humano, texto ou instituição. Ele nos deu um incrível presente chamado cérebro, use-o com cuidado e atenção. Se você não concorda com nada disso a vida segue, partindo do princípio de o que é sagrado para você deve ser sagrado para mim.

sábado, 16 de janeiro de 2021

NOSSOS RAPAZES NÃO MORRERAM EM VÃO

Depois das devidas correções dos historiadores de plantão o que digo pode até até ficar coerente.

Acredito, entretanto, que minha versão resumida vai servir de ponto de partida. Se não for exatamente isto me perdoem. Mesmo assim jamais deixe que a verdade estrague uma boa estória.

É mais ou menos assim: tipo 1915 políticos inflamados convenceram a nação italiana a reconquistar a grandeza da velha Roma e todos embarcam em uma tremenda furada.

15 mil mortos!

Então o que você poderia esperar como reação? Alguém no microfone do parlamento dizendo: Gente, vamos deixar os austríacos para lá, eles já estão todos enrolados no outro front e vão aceitar fácil um tratado de paz, basta admitir que erramos, nos desculpamos com a população e a vida segue. Bem foi justo o contrário...

60 mil mortos! N capa pi feridos.

O pior de tudo a ascensão do fascismo.

“Pra que ficar juntando pedacinhos do amor que acabou?” Pergunta inocentemente Guilherme Arantes.

It´s the human nature. Responde Michael Jackson.

É difícil admitir que o Titanic está afundando. Porém, quanto antes admitirmos que encontramos a namorada errada, compramos o terreno errado, votamos errado melhor.

Responsabilidade significa responder ao que fazemos. Somente quem admite quem errou é capaz de romper os ciclos nefastos que nos arrastam para o fundo.

Só assim poderemos chegar a um “novo tempo, apesar dos castigos”. Fico por aqui na companhia de Ivan Lins na esperança de que a boa música que evoquei ajude a atravessar um vale de lágrimas.

 

 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Sobre o Maicon, Marcelo, Fernanda, Márcia, Guilherme e Fábio Henrique

 


“Quando eu não puder pisar mais na avenida,

quando as minhas pernas não puderem aguentar...”

Sou professor.

Não é minha primeira profissão, mas sou de corpo, de alma, de uma cabeça cansada e de calos nas pontas dos dedos.

E assim o sou porque tive o privilégio de ver os melhores em ação. Os grandes mestres, os gênios, os homens e mulheres que serviram de modelo. Referência e reverência aos sérios, aos bem humorados, aos criativos, aos metódicos, aos exigentes, aos amigos. Todos geniais.

Como eu poderia seguir estes passos com meus pés claudicantes? Lecionar é um ato de esperança, mas também de coragem. Tantos pares de olhos miúdos seguindo meus movimentos, ciente que era modelo e inspiração. Uma terrível responsabilidade.

Depois de tudo fica o vazio quando as luzes da ribalta se apagam. Como passar este nobre papel para outros atores e atrizes?

Meu caminho começa com uma disputa boba: vivia as turras com uma amiga que amava matemática e dizia que a ciência de Pitágoras e Euler é a maioral, já eu defendia com todas minhas forças Newton e Einstein. Nossos primeiros passos estavam apontando para o árduo e maravilhoso caminho de ensinar exatas. Tudo que tínhamos era paixão pelos livros e fórmulas. Não sabíamos então, que isso é quase tudo que é preciso (exato, necessário) para apontar o norte. Ela não se desviou do caminho, eu dei muitas voltas.

Outra história é da menina que seguiu os passos do pai ao entender que grandes mestres são antes de tudo generosos e gentis. Ah! Não se esqueça da pitada de humor! Esta hoje ensina a ensinar.

Quem também cruzou meu caminho foi o jovem que fala sobre a vida. Novas técnicas, novas tecnologias e muito a me ensinar na nova jornada. Não fosse o suficiente ele está sempre na torcida. É impossível não oferecer o meu máximo quando o vejo como que aos gritos de um torcedor apaixonado.

Outro cara está ao meu lado, mesmo que distante. Ele traz consigo a arte dos alquimistas que virou ciência. A pedra filosofal está ali na esquina, basta que os alunos percebam o misto de esforço e excelência. Ele vai brilhar.

Aula a distância me aproximou de dois futuros professores: o que queria ser militar e o que quer se despedir da carreira. Diversas vezes aprendemos juntos, logo eles saberão mais do que eu jamais pensaria ser possível. É assim mesmo que deve ser. Professores são só bases de lançamento.

Um dia vou parar de me preocupar com questões, vestibulares e aulas. Este dia ainda não chegou, mas estou em paz. Quando vier sei que há muitos que vão carregar a chama.

Meu anel de bamba ( se é que um dia o mereci)? Já passei adiante!

Para

Maicon Marques, Marcelo Emilio Santos, Márcia Spíndola, Fernanda Veiga, Guilherme Tostes e Fábio Henrique