quinta-feira, 26 de julho de 2012


SENHORA

Assim que li a reportagem sobre a formatura das primeiras aspirantes à oficial perguntei a um amigo como seria que iríamos nos relacionar com as futuras oficialas; ele, motorista de longa data, me disse que não seria novidade nenhuma pois já estava acostumado a trabalhar com mulheres ao redor. Então lhe perguntei se ele estava falando do pessoal da área de saúde, já que temos pouquíssimas combatentes na área. E ele me disse que estava falando das viaturas e em especial da Auto Escada Mecânica, que ele costumava tratar de “senhora”.
Meu amigo não demorou a fazer entender o seu ponto de vista, por uma série de razões:
-         A escada precisa ser tratada com carinho;
-         Ela é reservada e normalmente “se casa” com alguém da prontidão;
-          O “marido” da escada a trata com um ciúme daqueles;
-         Do país que ela vem as embarcações são tratadas no feminino (e por que não viaturas);
-         Ela já foi a mais bela das viaturas de toda a corporação na década de sessenta e era tratada como uma miss, outro dia ela teria lhe dito que lera o Pequeno Príncipe para poder comentar um livro quando fosse entrevistada!;
-         Ela é uma senhora respeitada: as pessoas que não tem intimidade com ela até a tratam pelo seu sobrenome: Magirus; e
-         Ele disse ter  certeza de que ela lhe amava, pois sempre o ajudou quando mais precisava.

Somente quando vi o seu sorriso maroto, entendi que o meu velho amigo não estava pedindo por uma interação psiquiátrica. Então lhe respondi que o livro infantil que ele lera não foi o Pequeno Príncipe, mas sim Memórias de um cabo de vassouras, já que ele estava querendo personificar um objeto.
Logo após meu amigo se despediu rindo.
Por um motivo qualquer, tive que ir ao pátio e para meu espanto percebi que não podia ver a AEM 012 do mesmo jeito. E então percebi que meu amigo tinha se esquecido de um detalhe importante: A senhora dançou suavemente, como se estivesse ouvindo uma valsa abraçada à verdadeiros bailarinos: o Nélio, Brício, Emmerick, Cenízio, Blaudt, Turque e tantos outros que tiveram o privilégio de tocar gentilmente seu corpo sólido e bem cuidado.
A senhora está em muito boa forma considerando-se seus quase quarenta e cinco anos de serviços bem prestados, ela costuma ser a estrela nas visitas das crianças que fazem de tudo para expressar a admiração que tem por nossa profissão.
A sua vida lembra bem uma lenda que ouvi sobre um rapaz que amava tanto uma moça que resolveu combater um dragão, mas quando ele chegou lá percebeu que o monstro era forte demais para ser combatido. Desanimado, ele voltou para dizer que não conseguira trazer o tesouro que o dragão escondera. Mas ela, mesmo assim, se disse apaixonada e aceitou se casar mesmo sabendo que o seu amor não tinha nenhum tesouro para lhe dar. O rapaz resolveu trabalhar duro para oferecer o melhor que pudesse à esposa que tanto acreditava nele. E, já em seus últimos dias, resolveu rever o dragão para entender o desafio que deixara para trás. Ao lá chegar observou que o monstro tinha morrido de velho, então finalmente pôde trazer de volta para casa o tesouro prometido.
Da mesma forma a nossa escada vence o tempo a cada dia, sob os cuidados de tantos bombeiros que a amam, alguns deles ainda estão aprendendo a bailar com ela. Outros já ostentam a medalha de ouro no peito, aquele tesouro que obtemos quando se completam trinta anos de bons serviços. A mesma medalha a nossa querida alemã deveria ter recebido ha quinze anos.
Mas ela não se incomoda de forma alguma. Hoje de manhã, por exemplo, eu ouvi seus sussurros para o nosso novo Auto Bomba Tanque... ela roncava com o seu motor possante os segredos da profissão e abria a sirene dizendo o quanto amava estar ali no auge de sua força física e do alto de sua experiência.

Nova Friburgo, 25 de agosto de 2004.


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