sexta-feira, 29 de novembro de 2024

CLICHÊ

Ando na Cidade de Never Land, no tempo do era uma vez, talvez duas vezes, quem sabe três. Vejo o casal levando um carrinho de bebê e um embrulho no colo, meus olhos não parecem estar enganando, como sempre o fazem. É um casal de Dálmatas carregando humanos, passa por eles uma jovem mãe, ou tutora, se você preferir assim chamá-la. Ela traz na coleira um menino que mal sabe andar, em sua outra mão um celular, tratado como se fosse um bebê.

Queria muito ter a audácia hipócrita de dizer que observo sem o tal do juízo de valor, como se eu fosse a terceira pessoa do plural, ou melhor um verbo impessoal, desses que não tem compromisso nenhum com o espaço tempo vivido, ou com a metáfora vívida. Traço essas linhas da perspectiva de quem se apresenta como vira-latas, mestiço de origem, diverso por excelência. E ainda como conhecedor do fato que padrões morais são impostos a uma faixa estreita da sociedade que não é tão pobre a ponto de ter que ser trickster para sobreviver, nem tão rica para ser liberada por embargos infringentes (desculpe o palavrão). Mesmo assim é impossível não perguntar: onde foi que erramos?

Sei que é fácil amar um pet que retribui o carinho incondicionalmente, penso que eles nos dão a primeira perspectiva ter uma relação profunda com algo totalmente diferente de nós mesmos. Ressalto que cada criança deveria ter o direito a essa modalidade de afeto, que tanto ensina. O que inclui a lição mais difícil de todas, consequência da curta vida de nossos amores peludos.

Também não posso deixar de apontar a diferença de pronomes e adjetivos em suas funções gramaticais de substituir ou qualificar, aqui não estou falando de crianças e pets, mas da sombra de nós que nos tornamos.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

CAVALO DE TRÓIA

 A história da guerra mais contada começa com uma maçã e termina com um cavalo, essa odisseia começa com um cavalo e termina com um menino.

Entretanto, antes preciso contar uma anedota, essa envolve um cavalo velho e um poço mais ainda. O tal equino cai na estrutura que não funcionava há anos. O dono pensa uma forma básica para se livrar dos dois, então ele manda seus escravos jogarem terra até que ela se encha. Aqui cabe lembrar que não existe essa coisa de senhor de escravos bonzinho. O plot twist (carpado) acontece quando o animal se movimenta em L até conseguir saltar do poço, trazendo um moral da história de nunca desistir.

Deveria ser lindo. Só que não funciona. A lama, na prática torna a flutuabilidade complicada, a despeito do aumento de sua densidade, formando o que chamamos de areia movediça. Portanto, a história do cavalo velho que se supera é uma metáfora e só. É algo como ser atropelado por um trem por ler nas entrelinhas.

Volto ao cavalo. Esse não é de madeira, nem se supera milagrosamente flutuando na lama. O pobrezinho precisaria de uma guarnição de bombeiros para o resgatar. Infelizmente o Aspirante que comandava a guarnição acreditou em um subordinado e decidiu puxar o animal pelo pescoço, pois cavar sob ele e por uma barrigueira ia dar um trabalho insano. No fim o pangaré morre. Sei de tudo isso porque é o erro que vai nortear os outros 29 anos de minha carreira. Mea culpa, mea tão grande culpa.

Revisitei essa cena tantas vezes em minha cabeça que perdi as contas. É como se o Diego Souza tivesse feito o gol no Cássio. Só que isso volta ao terreno mágico. O bom e velho E SE...

Responsabilidade é quando entendemos que não há soluções mágicas. Bem-vindo a vida adulta seu Remo. O que decidi fazer, então, em homenagem aquele cavalo foi exigir o melhor padrão de resposta a cada socorro em que estivesse. A partir de alguns princípios básicos, tais como: na dúvida entre trote e socorro real coloco o bloco na rua. Se não há risco a vida sempre seguir a ação de maior segurança para a guarnição. Se for para pôr o pescoço a prêmio que assim seja, com coragem, mas sem correr risco desnecessário.  

Ontem saí da terapia e chorei quando entrei no carro no caminho de casa. A vida sacrificou um nobre animal para que eu me tornasse um bombeiro de verdade. Antes de chegar, todavia, a Aninha me liga e pede para comprar maçãs. Paro no mercado, entro. Contudo, antes de chegar na prateleira um lindo molequinho passa por mim correndo, um verdadeiro raio. Olho para trás para ver se há algum adulto para abraçar ele. Ninguém... só minhas pernas cansadas o poderiam deter antes que chegasse na rua. Pensei rápido e alcancei o pimpolho.

Esse menino pode até sonhar em ter um pônei. Mas foi um pangaré que o salvou.

sábado, 12 de outubro de 2024

O chapeuzinho da vovó

 O livro que mais me ensinou literatura não era didático, pelo menos não na área citada, era um livro sobre psicologia que destrinchava a relação entre a Chapeuzinho e o Lobo. Nele a figura paterna foi seccionada entre o Lobo e o Lenhador.  Eles são os polos opostos de um pai ausente da história e quem sabe da vida da menina que se perde no seu próprio inconsciente.

A partir de então o limiar de uma percepção sutil colidiu à minha frente. Deste modo Wilson e House, da série homônima se revelaram ser diferentes aspectos de um único médico desintegrado entre o conhecimento técnico, a relação com os paci(m)entes e os outros profissionais. Pois se assim não fosse os diálogos seriam internos e incompreensíveis ao público. O que vamos combinar estragaria a dinâmica da série e os conflitos deliciosos. Todavia, essas dimensões ultrapassam de longe o maniqueísmo comum dos contos de fadas após o crivo da Disney.

Outra possibilidade é a transformação de um ser em um objeto, algo como o Cortiço de Aluísio de Azevedo, o telefone no filme Atração fatal ou a bola do náufrago, Tom Hanks. O destaque especial vai para o Hal de 2001. Contudo, o mesmo não pode ser dito do replicante do Blade runner, pois esse era certamente mais humano que as unidades de carbono que o perseguiam.

Há até a possibilidade que esse pequeno texto lhe abra uma porta sem direito a volta, então se perca na Matrix e lembre o que o Neo aprendeu sobre conhecer e atravessar portas.

A cesta de doces vai formar a inteminável aliança entre a vó, que nutriu a mãe e vai ser cuidada pela neta. Se trata de uma trindade humana. Enquanto a figura masculina foi separada entre o bem e o mal, a feminina o foi através do tempo. Assim menina, mulher e velha se espremem na floresta em busca de um caminho de uma paz improvável entre dois lobos famintos.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

KAOS

Vou fazer o possível para não trazer spoilers a essa nossa conversa, mas posso dizer que a série está sendo ESPETACULAR, durante uma cena qualquer me perguntam se eu estava curtindo as referências, respondi que cada easter egg fazia derreter minhas papilas gustativas. Porém, se você faz questão de que os detalhes das personagens fossem cuidadosamente mantidos em uma suposta pureza dos ideais helênicos, prepare-se para a decepção.

Hera há eras se manteria fiel ao marido, pois ela era a esposa perfeita, portanto capaz de mirar o olho cego para as infidelidades do maior gigante gasoso do sistema solar, sua fúria (por falar nisso adorei as fúrias) iria sempre se direcionar aos filhos bastardos. Dionízio não se preocuparia em outra coisa que não o próprio êxtase. Hades e Posseidon seriam bem mais espertos. Eurídice corresponderia ao amor de seu bardo. Zeus e Minos, bem, esses são babacas mesmo.

Então, o que me faz pensar que o espírito mitológico foi preservado?

O topo do pódio vai para o fato de que o mito vivo é um pulmão e não uma pedra, suas variações são confirmações de um todo, assim se você quiser contar um mito qualquer para um amigo ou uma criança (melhor ainda se seus amigos não têm corações que envelhecem) sinta-se à vontade de acrescentar suas verdades.

Em um segundo a representação de Chronos como um personagem que cabe no punho de seu assassino é simplesmente genial.

Um terço para rezar pelas vítimas oprimidas, estejam elas em Troia, na Palestina, em qualquer país Africano, da América Latrina ou governado por Monções.

Um quarto e suas paredes para o diálogo entre pai e filha, marido e mulher e todas outras intimidades.

Um quinto de toda a riqueza para a revolta dos Inconfidentes ao ver como o poder leva o desastre as bases das Pirâmides.

Finalmente a inescapável metáfora ao perceber que estamos falando do aqui e agora, pois a natureza humana não mudou durante os séculos. Eu mesmo estou versando sobre deuses antropomorfizados para não dar nome aos minotauros.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Cosmos

Meu engenheiro predileto tem transformado fumaça em algo parecido com um sabonete Phebo, não é um trabalho qualquer. O tal do gás carbônico pode nos levar a uma catástrofe sem precedentes, então pode até ser que ele esteja salvando um pálido ponto azul, que era como Sagan chamava essa nave que nos leva a um futuro incerto.

Refleti sobre isso enquanto (ou)via um podcast, no qual o interlocutor reclamava de que algum idiota teria enviado uma nave aqui da Terra com diversas saudações e até música do Tom, e ainda dizendo a nossa localização. Afinal um alienígena “do mal” poderia saber exatamente onde nos encontrar, dando uma daquelas lacradas lindas que só podcasters sabem fazer, para mostrar o quanto são espertos.

O tal cara responsável por mandar essa mensagem em uma garrafa não tinha essa preocupação, você pode achar ele aqui mesmo no primeiro parágrafo. De forma alguma penso que ele possa nos ter posto em risco, por uma quantidade de motivos tão inumeráveis que nem vou me arriscar em começar. Talvez uma simplificação seja necessária, partindo dos parâmetros que temos do único planeta no qual já pus os pés. Há uma enorme chance de que a espécie dominante de um sistema solar qualquer seja um predador (até aí estou me escondendo debaixo da cama), todavia se algum dia esta seja capaz de viagens interestelares, também terá a capacidade de auto destruição. Enfim, só dá pra chegar lá quem é capaz de uma evolução ética compatível com a tecnológica.

Assim a Voyager já deve estar bem longe com essas preciosas informações sem me causar qualquer temor. O risco está aqui mesmo, entre guerras, relações de consumo, ganância, intolerância e nossa incapacidade de realmente entender o quanto estamos agindo de um modo autofágico.

Na mesma época em que o outro talento de Sagan desabrochava em sua incrível capacidade de divulgar ciência; um famoso comediante dizia para outro, não menos famoso, que não estava nem aí para a extinção do mico leão dourado. Espero que VOCÊ esteja, pois não estamos dando fim a só uma ou outra espécie, chegamos ao ponto de destruir florestas e recifes de corais inteiros. O que também nos coloca na lista de espécies em risco de extinção.

Cabe sempre lembrar que todo o filme de tragédia global começa com um cientista que não é ouvido. Mas para não terminar esta história de um modo tão triste vou contar pra vocês algo tão antigo, mas tão antigo, que é bem capaz de ser uma novidade. Em um dos meus episódios prediletos de Jornada nas Estrelas a tripulação da Enterprise se esforça para devolver um piloto da Força Aérea ao seu próprio tempo nesse pálido ponto azul em pleno século XX. Todo esse esforço fora feito para não interferir na história o que causaria um paradoxo de fluxo temporal (adoro quando posso usar essa expressão para mostrar o quanto sou nerd!), pois o filho dele iria fazer algo essencial para a humanidade.

Sabe o engenheiro do começo desse texto? É meu filho!

sábado, 14 de setembro de 2024

INDIVÍDUO


Eu vivo sempre no mundo da lua, porque sou um cientista o meu papo é futurista

Estou em busca de conexões, não que elas precisem de mim, coincidências simplesmente ocorrem do mesmo jeito que o mundo engravida quando uma criança está para chegar em sua vida. Algo como “Brincando com palavras simples, boas fáceis de cantar: luz de vela, rio, peixe, homem, pedra, mar, Sol, lua, vento, fogo, filho, pai e mãe, mulher” onde o Beto Guedes deixa por sua conta encontrar o fio condutor que juntou isso tudo.

Hoje mesmo Pitágoras, solidário, acorde, flexão de braço, tomate, saco de lixo, óleo de peroba, amigo e algoritmo estavam em briga na minha cabeça quando acordei para mais um dia de vida. Dentre as necessidades do dia a dia e a vontade de fazer algo significativo, ando perdido pelo mundo, só que diferente das palavras do cantor/poeta vejo a necessidade de explicar para mim mesmo onde essas encaixam se acham e se perdem.

Por exemplo, havia acabado de malhar quando vi uma nuvem em forma de til me chamar a atenção de que Gaia estava dizendo que não suporta mais tanta estupidez e queimadas. É lógico que diante do pensamento esqueci que estava me levantando para pegar a toalha no varal, então a barata tonta ficou andando em círculos (cujo perímetro é aproximadamente 6,28 vezes o comprimento do raio), sem saber ao certo a direção (um dos componentes de um vetor) e comecei a sentir dó (acorde formado por... deixa pra lá). Ou seja, nem no mundo real, nem na minha cabeça eu sabia para onde estava indo. Do quarto, a Aninha me chama para o aqui e agora: “Remo, a toalha lavada está no cesto”. Caramba, essa menina é telepata!

Antes de ir para o banheiro entro no quarto e tasco um baita beijo nela, que não para de rir. É isso! De todas as conexões importantes essa é soberana. Ter encontrado uma mulher maravilhosa me salvou de ser só um nerd maluco vagando na vida. Afinal só sou um ser integro e saudável por ser indivisível do duo.

domingo, 8 de setembro de 2024

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

domingo, 25 de agosto de 2024

Palavras


Passei boa parte de minha adolescência, talvez toda, assim meio sem saber qual era meu lugar no mundo. Então se digo que sei como certas palavras se sentem desajeitadas o digo com propriedade. Poderia até tomar como exemplo a palavra alfarrábio, mas não... Quem tem um nome tão estranho deve saber exatamente o que quer dizer. Outro assunto no qual também me qualifico como um expert, formado na faculdade da vida, baseado em dados que você não quer saber de onde tirei.

Poderia até ter medo de parecer óbvio e correr o risco de perder meu poder auto investido de me apresentar como poeta. Coisa que muitos fazem por aí sem nenhuma responsabilidade com os vernáculos, concordância, métrica ou até mesmo sentido. Mesmo assim não vou escrever que flores de plástico não morrem ou ainda que o amor é o calor que aquece a alma.

Depois das devidas desculpas peço a atenção para que você me diga se também não acha que o sentido das palavras fornecer, fornicar e futricar não lhe parecem trocados. O digo sem medo de plagiar Luis Fernando Veríssimo ao se referir a defenestrar em um texto delicioso com o mesmíssimo tema que abordo agora.

Do mesmo modo toda vez que falam em palavrão eu penso em embargos infringentes, uma tremenda sacanagem que determina que não somos, definitivamente, iguais perante a lei. E tudo depende do quanto você está disposto a pagar para que alguém lhe defenda além dos parâmetros do trânsito e julgado (peraí que fui lavar a boca com sabão).

Tudo isso me ocorre com o simples pensamento de que inhame e queijo tiveram seus nomes trocados na maternidade. Não é possível que algo tão gostoso tenha um nome tão insosso e vice-versa. Vai dizer que quando você acerta na medida da tapioca com café e ainda põe algo derretendo em cima, antes de salivar, não pensa: nhame, nhame.

Pois é.

É exatamente assim que me sinto, em especial em algum dia que estou pronto para me envenenar na padaria da esquina e peço para encher meu pão de sal com mortandela (e antes que você queira me corrigir, seja pela ortografia ou pelo hábito alimentar, saiba que é exatamente o que minha memória afetiva pediu naquela tarde). C não quer não? Mesmo oferecendo assim, prefiro dar uma lambida de fio a pavio, vai que C quer mesmo.   

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Coió de mola


A cena seria comum no Rio de Janeiro na década de 70, um motorista faz uma barbeiragem e o outro grita a plenos pulmões” Seu palhaço!”. Acrescento que há pessoas que sofrem de
coulrofobia, traduzindo, o medo irracional de palhaços. Como simplesmente a-d-o-r-o arte popular esses fatos nunca fizeram sentido para mim.

Iria morrer na ignorância se não tivesse aprendido que há uma profunda diferença entre palhaços e bufões. Afinal, como já sabido linguagem e história são fundamentais para uma compreensão mínima do mundo que vivemos. Então vamos lá.

Palhaços são figuras frágeis que representam a condição humana, eles convidam o público a rir deles. Bufões, por outro vão escarnecer dos presentes e quando confrontados têm ao seu favor o chamado animus jocandi, que em tese os permitia bufar até de reis (pelo menos até quando não fossem enforcados). São como luz e sombra que convivem lá no íntimo de cada um de nós.

Tudo isso apareceu quando meu melhor amigo me chamou de “coió de mola”. Depois de rir até deslocar a mandíbula tive a curiosidade de pesquisar. Logo o Google me socorreu dizendo que se trata do nome brasileiro de um brinquedo conhecido como Jack in a box, o que remeteu a segunda pesquisa... Bem, sabe aquele bonequinho que salta de uma caixa para dar sustos? Pois é.

Resta saber se se trata de um palhaço ou um bufão. A resposta é difícil. Dessas onde texto e contexto se encontram. Pois depende de quem faz a piada e para quê.

Para não lhe deixar na mão vou oferecer dois mapas, um para adultos e outro para crianças. Para essas fica a seguinte lição: amigos riem com você, idiotas riem de você. Para aqueles a dica: palhaços lhe ensinam empatia, bufões ridicularizam.

Encerro com o seguinte convite. Quando você souber de alguém que conta piadas racistas, misóginas, daquelas que incentivam a bater em homossexuais, fazem galhofas de quem passa fome ou está doente; sinta-se à vontade de xingar. A palavra certa é: bufão!

sábado, 17 de agosto de 2024

Três medalhas


Ao Lopes cujo exemplo nem o tempo pode apagar

Hoje irei entregar uma medalha ao seu verdadeiro dono. É um objeto feito de metal e honra que me outorgaram em uma cerimônia chique. Dessas em que não sei como me comportar.

A outra que eu estampava com injustificado orgulho afirma que fui um bom aluno. O que é uma mentira deslavada. Naquele tempo eu só queria que as férias chegassem logo e só fazia o mínimo que pudesse para esse momento não se atrasasse ou se perdesse em qualquer décimo de segundo. Parte de mim odiava a Academia, onde a pressão muitas vezes se transformava em depressão. Penso que eu deveria a levar para deixar na escola em que lecionei por boa parte de minha vida. Só para apontar para quem estuda que aprender vale a pena.

A terceira foi feita de tempo e prata. Posso até achar que essa é minha de verdade pois me dizem que tenho quase 60. Entretanto, o tempo não se possui. O tempo não é. O tempo não está. São uvas desidratadas e a água que se esvai em tal pia que não permite que um espelho se emende ou que o carvão vire madeira.

Caminho com a farda lisa, como um recruta que acabou de chegar, dentro dela carrego um coração sem nada além de amor e esperança de que meu amigo seja exemplo e luz para quem está por vir.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Ninguém vai chegar com tudo o que tem

 Se eu soubesse que fazer terapia é tão maneiro teria começado antes, parece um bom filme com histórias que dão pra rir e chorar. Ontem cheguei, finalmente a duas questões que realmente me levaram ao consultório do Dr. Luis.

- O sonho recorrente no qual eu chego só de short no Quartel Central para, ao cruzar o Corpo da Guarda, perceber que todos outros estavam com uniforme de gala; e

- A quase briga que tive com dois caras que insistem em andar com cachorros soltos.

A segunda questão é fácil e até já tinha matado a charada antes mesmo de atravessar o portal. Cheguei ao ponto de não ter que educar mais ninguém. Quem tem filho grande é elefante, quem tem filho com bigode é gato. Já os meus não precisam mais dos conselhos que eu poderia dar, enquanto quem tá andando por ai procurando encrenca pode a encontrar em outros lugares.

Já com a seminudez sonhada entendo que a toca do coelho é mais funda e ele passa por mim correndo com um relógio de ponteiros acelerados. Ao segui-lo o sonho ganha uma nova roupagem, nele estou só com uma sunga preta, justo o menor uniforme que um bombeiro pode usar. Saio aflito de um quarto onde padece meu primeiro comandante, alguém a quem devo nada menos do que a vida de meu filho, aflito em busca de ajuda passo por outros bombeiros e bombeiras que não me reconhecem, para no fim chegar ao auditório A, onde todos outros oficiais estão vestidos de cinza, estrelas, gemadas e espadas. Quase nu sou apenas alguém ridículo, cujos apelos não podem ser ouvidos.

Acordo estranho e só, mas em paz. Na cabeceira um exemplar ilustrado da Odisseia, nele marcado duas passagens. Uma do começo da aventura, para fugir do Ciclope Ulises, o trickister, diz que seu nome é ninguém. Próximo de Ítaca Odisseu, o herói, atravessa o Mediterrâneo a nado, como estava nu, Leocoteia a Deusa da pureza, vem em forma de gaivota tece um pano branco para preservar seu coração exausto.

Sem nada, chega o Ninguém, ao fim de sua jornada.   

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Fênix

Estou passando uma dificuldade estranha entre sustenidos e bemóis, se trata de uma realidade inescapável: mãos de 25 cm tentando tocar músicas delicadas, dessas que você ouve em elevadores ou no toque de celulares chiques.

É lógico que os dedos do monstrinho aqui teimam em esbarrar nas cordas erradas, o que combinado com minha vocação para o desastre tornam as execuções desagradáveis até para quem não tem ouvido absoluto. Já me dediquei a esticar as soluções óbvias como tocar as escalas com cordas de nylon, ajeitar alguns acordes para que fiquem mais simples ou simplesmente cantarolar que se você disser que eu desafino amor... naquela versão nada educada.

Andei a procura de um instrumento digno de um homem de aço que se adequasse ao meu jeitinho de jóquei de 110 Kg, só que os fabricantes teimam em fazer bons instrumentos com o braço mais fino que minha carteira no fim do mês, fazendo com que o indicador, médio, anelar e até o mindinho (que é o nome científico do mínimo) fiquem se acotovelado em vagões lotados da Central do Brasil.

Então, mesmo não tendo um vintém na carteira, decidi visitar um luthier na esperança de ser um freguês chuva, do tipo: moço só vim dar uma molhadinha. Mas sabe quando você entra em um museu pela primeira vez? As madeiras, os detalhes em metal, os sons, os cheiros, a obra de arte que só aparece depois de muito trabalho e dedicação?

Minutos antes a Aninha havia me treinado ao sair de casa com o seguinte mantra: Paciência, no ano que vem você compra. Fui repetindo na cabeça não vou comprar, não vou comprar, não vou comprar. não vou comprar.

Então o cara me diz: posso fazer um do jeitinho que você quer: Folk D-28 com cutway (não vou comprar),  Tampo de abeto alemão solido (não vou comprar),  lateral e fundo de pau-ferro solido (não vou comprar),  braço em Mogno (não vou comprar),  escala e cavalete em jacarandá da Bahia (não vou comprar),  tensor dupla ação (não vou comprar),  rastilho e pestana de osso  (não vou comprar),  tarraxas gotoh (não vou comprar),  cordas Elixir 010 (não vou comprar), finalização com verniz  fosco (não vou comprar), hardcase de luxo com bordado ( não vou comprar). Em síntese resisti bravamente.

Então ele puxou um ás da manga e disse: personalização de assinatura na 12a casa da escala com uma Fênix de metal. Comprei! Meu Deus, vou apanhar quando chegar em casa!

Ele vai demorar uns oito meses pra ficar pronto, espero que você me parabenize, pois estou grávido de um violão.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Tradutores e traidores

Lecionar para adolescentes nunca foi bolinho e a sala de aula estava especialmente agitada naquela tarde. Era a hora de usar a velha tática de passar uma música dos Beatles, a molecada sempre ficava espantada de uma banda tão velha ser tão maneira. Todavia a escolha de 8 days a week logo mostrou ser uma péssima ideia. Foi simplesmente impossível tentar explicar a eles que o número de dias não se tratava de um erro de digitação ou de aritmética. E que era aquilo mesmo que o Paul queria dizer entre um sustenido e um bemol.

Traduzir é difícil mesmo e quando é letra ou poesia a coisa fica feia. Além do mais devo declarar que tenho aversão a versões, a exceção do Beto Guedes ao perceber que os sinos na colina combinam com o perfume de todas as rosas, ou o Chico salvar a letra mequetrefe de Yes it is com um vento que passou.

Em (quase) todos outros casos não dá para traduzir sem que as ideias, as palavras ou sentido fiquem espalhados pelo chão. A lira rima com surpresa e não se conforma em dizer o óbvio. Então vamos lá: prefiro ser o serviçal de um samurai nos temores de um deserto ao som do zum de um besouro a me deitar sob um coqueiro que dá coco.

Que os olhos sorriam toda vez que alguém diga que o que é imortal não morre no final. Que lembremos da rosa por deuses esculturada enquanto passa a mulher traída que oferece 50 reais para o marido pagar a amante. Que a saudade seja afogada no copo de um bar e não na boquinha da garrafa.

Tudo isso quicou na minha cabeça ao finalmente entender que “todo mundo tem algo a esconder, exceto eu e minha macaca” de uma letra bem desencontrada do Lennon. O fato é que eu traduzia esse trecho usando a expressão “para mim e para minha macaca”. O que obviamente não fazia sentido algum. Pensar com cuidado no contexto salvou o texto, pois isso só ficou claro quando lembrei que que a Yoko era preconceituosamente atacada, e um monte de “gente” se referia a ela como chimpanzé. Então, o autor de Imagine decidiu declarar o seu amor ressignificando as palavras dos detratores. Assim “nada a esconder” poderia se referir ao modo que eles se apresentaram na cama para a imprensa em sua lua de mel.

Outro dia Djavan explicou o colorido de seu açaí, o que considero uma pena enorme. Metáfora e piada não foram feitas para serem explicadas. Se o fossem eu gostaria muito entender o porquê do coqueiro que dá coco tem que dar 50 reais na boquinha da garrafa para o marido imortal, aquele que não morre no final.

sábado, 6 de julho de 2024

EGO

 

Sou o Baby e você tem que me amar. O bordão se alternava com o personagem sendo jogado na parede. E assim mais uma vez a metáfora nos levava a catarse de sermos todos os personagens ao mesmo tempo: o bebê egocentrado e o pai despreparado que nunca sabia lidar com as pressões da vida adulta.

É dito que cães muitas vezes, mesmo sendo adultos, simulam ser filhotes a espera de uma adoção. Porém como podemos acolher seres que não passam de máquinas de fazer xixi, cocô que vêm acopladas com uma caixa de som terrivelmente ajustada para as notas mais agudas?

E voltando a ideia de que em sonhos, contos de fadas e metáforas somos todos os personagens: como adotar o menino egoísta que vive dentro de nós, principalmente sabendo que ele responde prontamente quando alguém chama o seu próprio nome?

Até mesmo penso que minha trincheira mais bombardeada pode encontrar raiz nesse fato. Melhor explicando: venho caminhado por aí lecionando até quem não quer estudar e as vezes é difícil explicar que a Terra é geoide. Talvez isso ocorra devido ao fato de que sob um ponto de vista local é o universo que se move ao redor de nosso PLANeta (lembremos que a própria palavra não prova que nada é plano – a etimologia vem do grego com significado de errante), ou ainda que as constelações não giram ao redor de seu umbigo.

Ao responder essa indagação acabo correndo o risco de (pare)ser arrogante. Trago verdades prontas há muitos verões esquecendo que uma autoestima exagerada me trouxe até aqui. Pode ser que eu desista de lhe convencer, afinal quem tem filho grande é elefante e quem tem filho com bigode é gato. Só que a coisa fica bem complicada quando sou ambos personagens. Então a tentação de matar esse menino que mora dentro de mim fica gigante ainda mais quando não é claro se ele é a expressão do príncipe de Maquiavel ou de Exupéry.

Cada uma das vezes que me perdi em minha própria arrogância a vida me deu uma porrada digna de Mike Tyson. Portanto não me diga que sou um cara legal por vontade própria, cheguei até aqui em uma trilha de menor esforço na mesma lógica do malandro que percebe ser muito vantajoso (pare)ser honesto.

Entre o menino chatíssimo(íssimo, íssimo, íssimo) e quem sou hoje há um cara com tantas histórias de perdas que nem vale a pena lembrar. Mesmo assim decidi carregar o principezinho comigo aonde quer que eu vá. Sei que de repente ele pode se soltar das amarras de uma torre qualquer jogando as tranças para encarar o mundo. Vez ou outra, vai dar bobeira e não entender que o humor não cabe em um velório ou coisa que o valha.

Outras vezes esse Reminho acerta em cheio e acolhe uma amiga na beira de um abismo, aceita o abraço da família ou simplesmente sorri quando vê um sapato velho e lembra de uma canção.

Se você estiver cansado desse cara espaçoso e inconveniente tudo bem, caso contrário estou por aí entre números, acordes e poesias na esperança de encontrar a criança que habita em você.    

domingo, 30 de junho de 2024

A raíz de menos um

 

- Bicho,  você não vai acreditar! Tô namorando uma mina sensacional.Ela é uma gata, maneira e esperta.

- Mentira, C não pega nem resfriado!

- Não acredita? Olha a foto dela aqui.

- Já sei, recortou de uma revista e fez uma montagem. Cara, tá precisando ir pro Pinel. Todo mundo mandou a letra que ia ficar doido de tanto estudar matemática.

- Juro. Ela não é imaginária que nem a raiz de menos um.

-  Beleza, C tá namorando a mina, mas ela sabe disso?

- Ainda não, tô meio tenso de falar com ela. Acho que quando ela souber disso ela desmancha comigo.

Era bem o tipo de conversa que nós tínhamos frequentemente, entre o humor e o desespero. Afinal quem ia querer os caras duros, magricelos e desengonçados que viviam discutindo sobre o último episódio de Jornada nas Estrelas?

Se a viagem no tempo fosse possível e não causasse paradoxos de fluxo espaço-temporais (algo como - tudo bem você conseguiu voltar no tempo, mas já parou pra pensar que a Terra mudou de posição o suficiente desde então para que você voltasse justo no núcleo de uma estrela?) eu falaria pro cara de 14,15, 16,17 ou 18 pra ficar calmo que a hora iria chegar.

Ontem tirei essa foto dela aí, que não é montagem e nem foi recortada de uma revista. Eu havia acabado de tocar Todo azul do mar em homenagem a ela e aproveitei um segundo de distração para mostrar ao mundo que a garota realmente existe. Para completar a história ainda teve a audácia de dizer que não gostou da foto, pois não estava bonita (meu Deus! Ela não tem ideia do quanto é linda!)

Para o cara de 19 que finalmente a encontrou poderia dizer que More than words só faz sentido agora se pegar o coração dividido (dois átrios e dois ventrículos) e entregar as quatro partes para ela, a tal ponto que matéria, espírito, espaço e tempo mostrassem um único sentido possível para a vida.

Nessa história cada um dos pedaços é que têm o valor de i (se você não entendeu isso assista minhas aulas sobre números complexos), e que i elevado a quarta potência é igual a um, pois é isso que somos.

 

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Média 5

Havia duas juradas no programa de calouros. Uma era Márcia de Windsor, a outra era Aracy de Almeida.

Não importava muito o que o calouro fazia, pois o comportamento delas não variava. Márcia balançava as joias e sorria com seus olhos azuis (Pixinguinha que o diga) e bradava: minha nota é dez!

Araci dava um pigarro e vociferava é zero!

Um dia foram entrevistadas juntinhas e o repórter não as poupou da pergunta óbvia.

Araci conta que o faz por pena daqueles que jamais teriam condições de sobreviver a dura carreira artística, as gravadoras, as letras pequenas dos contratos e, aos empresários que só queriam tirar proveito.

Márcia lembra que um dia fora convidada para cantar Yesterday com uma enorme orquestra. Ao subir no palco esqueceu a letra e cantou a melodia inteirinha com um hum-hum-hum sem fim. Foi as lágrimas, pois tinha convicção de sua breve carreira tinha sido cancelada. Só que quando termina destroçada foi surpreendida pelo público que a aplaudiu de pé por uma eternidade.

Desde então, passei a entender que o primeiro passo de qualquer avaliação é avaliar o avaliador.

Hoje mesmo recebo a resposta de uma editora me incentivando a defenestrar um projeto de mais de quarenta anos, pois um livro de crônicas e poesias com 280 páginas ninguém lê.

Ela trabalha com isso e deve ter razão. Mesmo assim, devo declarar que o que conto deve estar crivado de viés e imprecisões, por exemplo, sobre a cor dos olhos da jurada. Afinal a TV lá de casa era em preto e branco.

Então posso até pensar que deve haver exceções pois essa é a página 281.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

De volta para o futuro

Recebo o meme este mostra que estamos cada vez mais parecidos com os Jetsons, enquanto nos deparamos com robôs e carros voadores. Posso até concordar, principalmente quando lembro o quanto o trabalho do pai é precarizado, sem horário certo para terminar e que seu chefe pode fazer uma vídeo chamada inoportuna para uma nova demanda.

O desenho veio na esteira dos Flintstones, onde ocorre um passado idílico que nunca aconteceu, como normalmente é qualquer nostalgia que quisermos evocar. Temos também a série, interminável, da família padrão encarnada pelos Simpsons e essa se ancora no aqui e agora.

Mas, dentre Georges, Freds e Homers de quem sinto saudade mesmo é do Dino da Silva Sauro. De fato, fico espantado de como a série não passou de uma temporada, mesmo assim quase nos matou de tanto rir.

Nesse contexto passado, presente e futuro resolveram me visitar neste mês em que tive a péssima ideia de comprar uma máquina de lavar da _______ (nome da empresa suprimido para evitar ações jurídicas,  mas se você estiver curioso basta rimar ). Para no final de contas chegar à conclusão de que o prazo de reparo proposto pela garantia do fabricante não passa de uma obra de ficção.

E lá vou eu tentar ser ouvido por quem recebe para isso, mesmo sabendo que ninguém realmente ouve velhos. Nessa estória, estou vivendo um misto de o “dia da geladeira” e o “poço de piche”. Caso não lembre dos episódios de A Família Dinossauro, vale a pena pesquisar para rir e filosofar. No caso do eletrodoméstico fica a reflexão de como nossa dependência da tecnologia pode  ser quase tão importante quanto oxigênio. No outro se desenrola a despedida da Zilda e a alegria do Dino em se livrar de um peso morto. Tendo sido uma criança chata, um adolescente insuportável, um adulto no mínimo excêntrico não tenho grandes esperanças de ser um velho bacana. Então, vendo da perspectiva de quem deveria me arremessar é até difícil não ser solidário.

Talvez eu só queira destilar um pouquinho de veneno ao considerar que ainda nesse ano serei, oficialmente, um cidadão sênior; portanto elegível ao poço de piche, mesmo que esse seja apenas metafórico. De certo, o que percebo é que vivemos relações cada vez mais etiquetadas com preços bem definidos pela lei da oferta e procura. Portanto, não é a melhor coisa do mundo resolver ficar velho justo quando nós estamos em excesso na sociedade. Principalmente quando algum de nós decide não estar à venda. Todavia, a alternativa de não chegar a ficar velho não me seduz nem um pouco. Já que estamos usando referências antigas posso lhe dizer que o nome do filme é “O céu pode esperar”.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Charlie de todas as cores

Recentemente me vi perdido ao ver o Rei Charles, o Ray Charles, o meu amigo Charlie Brown (do Benito de Paula), o dono do Snoopy, o Carlitos e todos outros que possam responder ao grito de: Hei, Charles! Aonde você vai?

Essa imagem gritou na minha frente um pouco depois da assunção ao trono do soberano da Inglaterra (não vai ter jeito os epítetos terão que povoar esse texto, do mesmo modo que ocorre quando uma criança lhe pergunta se um pato sem pata é viúvo ou manco), para logo depois ouvir o samba alegre do menestrel de Nova Friburgo acolhendo um amigo estrangeiro.

Modelos representativos importam. Leciono física há tempo bastante para entender que a ciência não passa de uma representação interpretativa da realidade. E ao sair da sala de aula posso dizer, sem medo de ser feliz, que estou me apaixonando pelo avatar de minha esposa a cada postagem dela no Zap. Isso ao compreender que me encanto com representações transitórias e o que elas trazem, mesmo sendo apenas sombra de uma mulher fantástica.

Por outro lado, foi apenas um pequeno gesto que o monarca fez que me trouxe todo esse incômodo. Também incomodado ele acenou para um mordomo que, telepata, tirou um objeto do campo de visão de seu suserano. Pode parecer uma besteira, mas no final das contas diz bem que a acumulação de riqueza traz em si os maiores males da humanidade. Incluindo o fato de que alguns se acham no direito de se sentirem melhores que outros, apoiados por todos os aparatos jurídicos e sociais; o que inclui uma certa etiqueta como diminutivo de ética.

Penso de forma divergente e espero que haja igualdade na diversidade, porém se tiver que escolher alguém para ser o melhor de toda essa confusão meu voto fica dividido entre o vagabundo de cartola e bengala e o pianista que superou todas as adversidades, inclusive a percepção de que seu instrumento tem teclas de ébano e marfim.

terça-feira, 23 de abril de 2024

A pedra e o lago

 Arthur tem uma espada

Assim pensava com o livro pousado sob o travesseiro

Mas como vencer as lutas da Terra ou do espírito?

Pouco importa: Arthur tem uma espada.

 

Matéria e energia, alto e baixo

Dor e prazer, yin e yang, pai e mãe

Seguem adiante misturando as cores

Arthur tem uma espada?

 

Outras páginas viradas e uma são duas

A que foi retirada da pedra

A ofertada pela Senhora do Lago

Arthur não tem só uma espada.                                  

 

A vida simplesmente acontece

Claro e escuro trocam de roupa

Mudam ou se confundem de cinza e cinzas

Arthur tem uma espada

sábado, 30 de março de 2024

Gatos vivos e mortos

Não são poucas as vezes que me sinto como cobaia nas aulas de Pilates, com alguma força, pouca resistência e flexibilidade zero devo parecer um ratinho de laboratório nas competentes mãos de minha professora. Em um desses dias que ela estava inspirada resolveu perguntar se eu estava morto ou vivo depois de ter, simplesmente, me esculachado. Minha resposta deveria ser um não, mas acabou não sendo mais que um miado.

Aqui me cabe não explicar o significado de gatos vivos e mortos, por não se tratar de uma aula de física e sim uma metáfora. Tento com muitas forças não acabar sendo um professor Pardal, até porque quando alguém me fala que certas situações práticas são consequências quânticas fico com enorme desconfiança de que o interlocutor não tem ideia do que está falando, o que tem sido muito comum nestes tempos de zap-zap.

Isso me leva a uma encruzilhada de ter enorme necessidade de dizer o ao mundo como quero expressar e ao mesmo tempo ter razoável noção de minha própria irrelevância. O problema se agrava quando essa encruzilhada se transforma em uma rotatória da Estrada de São Vicente (não aquela imaginária do Bituca com sabor de chocolate), mas uma aqui mesmo em Araruama onde o hábito de dar preferência a estrada principal se contrapõe a regra de trânsito, o que leva a alguns acidentes. Ficamos perdidos entre a preferência ser de quem se impõe e avança e a prudência de quem para.

Enfim, fico aqui sem uma resposta pronta para você, que já reclamava da confusão causada pelo Bardo ao indagar “Ser ou não ser, eis a questão”. Tudo que posso dizer entre gatos, encruzilhadas, rotatórias e metáforas é: “Ser E não ser, eis a questão”.

sexta-feira, 22 de março de 2024

O Dono do dom

Tenho feito entrevistas de vagas a ser meu amigo, compreenda: a melhor faceta de estar pijama não é o não trabalhar. Trabalhar é bom, apesar de folgar ser melhor. Entretanto, quando se trabalha temos que lidar com pessoas que são verdadeiros “pontas de aterro”. Hoje faço questão de só me cercar de gente fina elegante e sincera. Há vampiros demais no mundo, os meus mandei todos para... Transilvânia.

Tal qual os RHs que circulam por aí também faço uma importante pergunta. Elaborei um bocado para chegar a ela. Pasmem: não é “qual o seu defeito”, pois temo ouvir a palavra perfeccionista, até porque o cargo já foi ocupado pela minha esposa e por um grande amigo. Então não sei se sobreviveria a terceira pessoa do plural.

Pergunto o oposto, para descobrir o que a pessoa tem de melhor, mesmo que isso não se reflita em sua resposta a uma questão que aparece assim quase no susto, até porque boas pessoas são necessariamente responsáveis e consequentemente autocríticas. Observe ainda que a posição de alguém “que se acha” em minha vida também já está ocupada, nesse caso por mim mesmo.

"Sou forte", me diz o atendente de supermercado, obviamente fisioculturista e lutador (nas artes marciais e na vida), acrescentando que usa a força para proteger a quem ama. Bingo! Preciso de alguém assim em minha vida.

O amigo perfeccionista diz que sua virtude é a paciência, e minha menina diz que é sua capacidade de ouvir as pessoas, minha irmã diz que a espiritualidade é seu guia, um amigo genial fala da saudade que quem ama e da grandiosidade do universo, meu melhor amigo se autodefine como um discreto líder, penso que ele não tem espelho para saber que seu sorriso é encantador; sua mãe gagueja e não vê em si mesma a guerreira pioneira que se formou em engenharia na década de 70. Uma amiga do Pilates simplesmente diz que “é do bem”.

Ainda não perguntei para os meus filhos, mas sei que ele tem um enorme senso de justiça e ela uma enorme capacidade de buscar caminhos diante de um mundo que não foi feito para uma menina de1,6m. Minha nora é brilhante os pais e tios dela têm um humor incrível. Meu genro é solidário. Meus irmãos são perspicazes, minhas irmãs guerreiras, meu professor de violão é gentil, a professora de Pilates tem incrível tirocínio, minha nutricionista nos adotou quando mais precisávamos, meus melhores professores generosos, os melhores bombeiros seguem o segundo mandamento.

E você?

Não pense muito, responda com o coração e não com o cérebro. Pode até ser que você descubra ou lembre que Deus lhe emprestou um dom.

Isso é para essa vida, que lhe sirva de guia para atravessar os desafios deste mundo.  

segunda-feira, 11 de março de 2024

Passo de balé

 

Dizem por ai que mitômano tem por origem a palavra mito, não sei se concordo, mesmo que a tal da etimologia diga isso, afinal antenas podem ser parabólicas e captar verdades universais perdidas nas ondas de rádio.

Então me permitam contar: era uma vez uma bailarina...

Ainda pequenina ela aprendeu a andar, pois no colo iria sempre sua irmã ainda menor, assim foi aprendendo a se equilibrar até em fios de cabelos. Talvez seja por isso que até hoje ela ensine a outras meninas e outras bailarinas a compreenderem que não é só Sansão que deve se orgulhar de suas madeixas.

Bailarinas e motoqueiros têm algo em comum, simplesmente caem (ou mentem sobre o assunto), porém a queda diz muito pouco sobre esses seres alados, e sim o modo que sacodem a poeira e dão a volta por cima.

O caminho para a casa da vó não tinha florestas nem lobos (isso não inclui aqueles que vestem peles de cordeiro), nem mesmo a pedra do caminho de Drummond, mas havia uma escada. Não uma escada qualquer: a escada. Diz a lenda que o pedreiro tinha misturado chiclete com banana quando a fez.

Corajosa ela corre na frente para ter mais tempo de ouvir as estórias de quando sua vó fugiu para o circo. É claro que tropeça, e o conto viraria uma tragédia se seu pai também não fosse um misto de acrobata com equilibrista. Bolsa na mão esquerda, caçula na outra mão  esquerda, só lhe restando o pé não menos esquerdo a apoiar o primeiro salto mortal da filha, que gira no ar e crava os pés em terreno seguro. Quase pude ver os jurados levantando uníssonos as placas carregadas de notas 10.

E é disso que são feitas as bailarinas que bailam, que ensinam e que cuidam de suas pupilas sempre as lembrando que elas têm suas próprias ficções.

Assim termino com hipérbole a parábola que tenho na memória, ou seja um mito, uma profunda verdade.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Graça

Vejo você assim toda elegante, 
atenta e delicada 
Caminha, dúbia entre passos incertos e o temor do assédio. 
Sei que represento tudo o que teme.
Mas como lhe explicar que meu olhar só traz o espanto de ver seus olhos, pintados com suave sobra verde.
O encanto se repete a cada vez que passo pelo mercado.
E só os peixes sabem desse nosso encontro.
Vestida de branco com suas longas pernas você foge a despeito de meus apelos. 
Voa longe,  com graça, a garça.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Reflexões

Aqui novamente, esperando as cinzas com quase todas as máscaras caídas.
Já fui rei e palhaço. 
Do ar a leveza, da espada o fino aço. 
Brilha superfie de prata.
Mesmo assim esconde o que pulsa, que bem sabe: nada disso vai importar quando Hélio, vermelho de cansaço, engolir o deus da guerra.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

HABEAS CANIS

Meritíssimo.
Venho por meio deste solicitar HABEAS CANIS.
Infelizmente tenho sido vítima de uma série de calúnias. 
Não fui eu que quebrei o caneco, bati na galinha nem surrou o marreco. 
Tais mal feitos foram perpetrados por um maldito pato.
Não tive  como pagar a fiança pois não possuo nada além de carrapatos.
Sou mais uma vira-latas que estava na hora errada no lugar errado e tenho convicção que não passaria por tal tratamento descanino caso fosse uma border ou até mesmo uma pinscher. 
Ora me comprometo a não mais latir para as visitas, urinar na cozinha ou fugir dos banhos semanais obrigatórios.
Nestes termos, peço deferimento, por caridade.
LUNA