segunda-feira, 23 de julho de 2012


SENHOR MILTON

-Três vezes nove?
-Vinte e sete.
-Quatro vezes nove?
-Trinta e seis.
O diálogo poderia parecer totalmente deslocado, meu interlocutor não era uma criança de sete anos, mas uma de setenta e quatro; o cenário não era uma sala de aula, ou mesmo a mesa já esvaziada de um jantar e sim um quarto de hospital.
Alzheimer já tinha tomado quase todo o cérebro de meu sogro, se fosse um jogo de WAR seria a hora de declarar o adversário vencedor. Mas em algum lugar daquela mente sofrida o Sr. Milton resistia. E basta ter visto Matrix para saber que corpo não vive sem mente.
Ele ainda era capaz de pedir água ou suplicar para voltar para casa. No instante anterior, por exemplo, ele estava justo repetindo “tira...tira” apontando com o olhar a agulha  de soro em seu braço esquerdo. Cantei “boemia” fazendo com que ele se distraísse repetindo as palavras que sabia: “peço...voltou...boêmio...acontece...”.
De repente, nem mesmo a musica predileta foi suficiente, me vi então numa verdadeira luta de judô para evitar que ele conseguisse se livrar da cama e dos apetrechos que o mantinham.
Foi ali que lembrei do quanto ele se orgulhava em saber a tabuada.
- E aí, Milton, quanto é dois vezes um?
- Dois
Daí em diante descobri a fórmula para entretê-lo durante o resto das duas horas que me propus cuidar dele, sob a elaborada e generosa atenção dada pelos profissionais do Hospital Nossa Senhora do Carmo.
Saí de lá pensando que iria justamente preparar a aula do dia seguinte para o pré-vestibular. Logo afastei o óbvio pensamento de o quanto o ensino de matemática era inadequado no tempo de meu sogro. E me veio a idéia do quanto nós matematizamos na vida conscientemente ou não. E pensei ainda o quanto o conhecimento da matemática nos dá uma sensação de domínio. Seja este sobre os outros, nós mesmos ou até sobre a  nossa própria capacidade de aprender ou de nos manter conscientes.
Em suma saber matemática é vital! Como era vital para seu Milton não desistir.
A luta dele já estava praticamente perdida naquele instante, no entanto as suas respostas sempre apontaram para a necessidade de manter vivo e atuante:
-Quero água!
-Minha casa!
-Quarenta e cinco.
-Cinqüenta e quatro.
-Sessenta e três.
-Setenta e dois...

2 comentários:

  1. Amo tudo que escreve.
    Meu pai.faleceu com 86 e era "afinadinho " na tabuada.
    Você é um excelente genro e uma pessoa de um coração enorme.
    Abraços,Sonia

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