Devo ter visto o Mágico de Oz umas duzentas vezes
quando passava todo os dias na Sessão da Tarde, porém só recentemente dois
detalhes ficaram claros para mim: a relação com diversos problemas ligados a
Defesa Civil e o fato de que o filme, inicialmente em preto e branco explode na
novidade do Technicolor revelando a cor da “brick road”. Logo eu que ainda há
pouco pensava que a memória teria em nós algo como fitas cassete enroladas em
nossos neurônios.
Hoje compreendo o quanto a memória me traz para o
mundo feminino ao lembrar da irmã que não sobreviveu a si mesma me oferecendo
banana com canela, da outra irmã que me deixava desolado ao pôr o uniforme da famosa
loja de departamentos para sumir de minha vida ou da menorzinha que se escondia atrás das pilastras dos blocos dos sargentos para cuidar de mim.
Hoje essa deusa louca chamada Mnemosine me diz que
para lembrar algo deve ser, necessariamente, relevante em emoção. Dentre essas
névoas passa um filme em cores plúmbeas de um ônibus avariado no que parecia
ter sido mea culpa por estar fazendo muita bagunça. Todos no coletivo,
incluindo o condutor mal-encarado apontavam os olhares para mim. Se o que recordo
até agora lhe parece inverossímil dê o devido desconto pois até então minha
mente só havia vivido uns quatro anos. Então um pequeno anjo de cachinhos dourados
e olhos azuis me dá a mão e diz: “falta pouco, daqui até em casa dá pra ir a pé”.
Um final triste para um passeio na praia.
Ela deveria estar pisando nos astros distraída ao passear
entre duas músicas daquela época: “she was just sixteen and all alone, when I
came to be” e “she was just seventeen and you know what I mean”, entretanto já carregava
as dores de “Maria, Maria”, antes mesmo do Bituca cantar.
Eram anos de chumbo, mas ela e seu namorado precisavam
de uma pausa humanitária em uma luta que já se provava ser assimétrica. Como
ele era meu irmão decidiram se esconder na praia, e para parecer um feliz casal
com um filhinho me pegaram emprestado para reforçar o disfarce. Foi uma semana
de sol, sal e pão de milho, em um filme colorido no prenúncio do furacão que
iria levar tudo para o reino de Oz.
Os nove anos seguintes não foram nada fáceis para o casal
que disse adeus a estrada de piso amarelo, tantas vezes manchada pelo sangue de
seus companheiros. Fatos que não cabem nos programas de entretenimento da TV.
O tempo lhes deu a chance de mostrar suas cores
verdadeiras. E até poderíamos parar por aqui pois somos efêmeros como beijos de
novela.
Hoje o anjo tem pintado de branco os cachinhos
dourados e parece ter esquecido dela mesma. Então cabe a nós lembrarmos, sobre
o risco de que o esquecimento nos leve aos mesmos erros que apontam para a Casa
Rosada, a despeito dos alertas das Mães de Maio.
Então lhe proponho que não olvide! Me conte das
histórias em que ela ficou gigante a despeito de sua frágil estatura defendendo
alguém que precisava. Me diga que se é verdade ou anedota as tantas cartas que
chegavam ao escritório dela, devido ao seu nome lembrar o diminutivo de ilustríssima.
Fale de como ela se comporta como mãe, trabalhadora ou revolucionária. E fale
com afeto, afeto é irmão siamês da memória.